terça-feira, 18 de outubro de 2011

R.S.R. e sua experiência com “o narcótico do grande demiurgo”



O metrô parou
O metro aumentou
Tenho medo de termômetro
Tenho medo de altura
Tenho altura de um metro e tanto
Me mato pra não morrer
Minha condição, minha condução
Meu minuto de silêncio
Os meus minutos mal somados
Sadomasoquismo são
Meu trabalho mais que forçado
Morrendo comigo na mão

[Pra dilatarmos a alma
Temos que nos desfazer
Pra nos tornarmos imortais
A gente tem que aprender a morrer
Com aquilo que fomos
E aquilo que somos nós]

(O Mérito e o Monstro - O Teatro Mágico)

Nesses últimos dias, estava lendo o livro “Administração, Poder e Ideologia”, do Maurício Tragtenberg, para poder acrescentar algo ao meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), quando encontrei com meu amigo e também notívago R.S.R., estudante de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPa). Fazia tempo que não encontrava com ele e decidimos ir a um bar beber algumas e conversar um pouco, primeiramente sobre o que cada um estava fazendo e depois sobre os temas que sempre estavam presentes em nossas conversas pelas noites de BelHell: Política, Filosofia, Administração, Psicologia, Sociologia e demais áreas afins. Então, conversa vai, um gole de cerveja, conversa vem, outro gole de cerveja, R.S.R. reparou no livro que eu estava segurando e perguntou sobre o quê a obra tratava. Eu sou muito fascinado pela obra do Tragtenberg e já até havia falado desse autor para o R., então, lhe apresentei o livro, explicando as principais ideias defendidas por Tragtenberg e me detendo muito nos dois últimos capítulos da obra - Exploração do trabalho I (p. 121-157) e Exploração do Trabalho II (p. 159-231), que tratam sobre as práticas de exploração utilizadas pelas empresas nos meados do século XX nos Estados Unidos e no Brasil, respectivamente.
Ao começarmos a discutir sobre as ideias apresentadas por Tragtenberg e ambos concordando que infelizmente ainda existem práticas semelhantes às descritas em “Administração, Poder e Ideologia” sendo aplicadas por empresas em pleno século XXI, R.S.R. decidiu contar-me uma experiência de exploração empresarial que passou e testemunhou antes de entrar para o nível superior e que me deixou “pasmo e ao mesmo tempo perplecto (sic)”, como diria um amigo meu. Então, decidi pedir-lhe para escrever o que havia me relatado para que pudéssemos compartilhar aqui no Club e fazer desse texto não apenas uma manifestação e testemunho contra o capitalismo sem escrúpulos, mas uma ode à máxima de que o conhecimento liberta.
Resultado: R.S.R. aceitou redigir o texto, desde que sua identidade fosse mantida em sigilo por questões de segurança e resguardo, e abaixo compartilho com vocês esse texto regado de indignação e ironia bem medida.
Amarildo Ferreira Júnior

Aviso importante: antes de ler saiba que ironia é pré-requisito para entender toda a essência da mensagem desse texto, portanto, se não a tem, leia Augusto Cury ou Paulo Coelho!

“Os tormentos ‘civilizados’ na exploração do trabalho substituem os tormentos bárbaros do pré-capitalismo”
(Maurício Tragtenberg - Administração, Poder e ideologia, p. 163).

Era final do ano de 2006. Eu estava desempregado e aquele clima de festas de fim de ano estava no ar há muito tempo. Eu já morava só e por isso estar desempregado me preocupava, além da ideia de passar o fim de ano sem dinheiro para poder sair e comemorar aquela virada de ano que, apesar da situação em que me encontrava, tinha sido muito bom para mim. Na época eu estava sem estudar (terminei em 2003 meu ensino médio, aliás, foi nesse período que conheci o Amarildo, e desde então apenas me dedicava a trabalhar para poder sustentar-me, já que havia decidido morar só), mas sempre gostei de ler e, modéstia a parte, sempre fui muito inteligente, embora hoje leia bem mais e me considere com maior perspicácia e sabedoria do que antes. Enfim, o fato é que eu estava desesperado para conseguir um emprego que pudesse fazer com que eu me sustentasse e sustentasse meus vícios: o álcool, que ainda consumo, e a maconha, que já não uso mais, embora seja a favor da legalização.
Como não tinha qualificação na época e meus empregos passados, salvo as aulas de reforço que eu dava em química, física e matemática e que me garantiam algumas garrafas de rum ou vodka e alguns fininhos de erva nos fins de semana, tinham sido todos em nível operacional (chegando a ser braçal em alguns casos), eu colocava meu paupérrimo currículo em tudo que eu via nos classificados: ajudante de pedreiro, office boy, garçom, enxugador de gelo, limpador de carvão, etc. Meus pais sabiam que eu estava no maior perrengue, e por isso meu pai passou em casa para me levar ao shopping para comprar alguma roupa para passar o fim de ano, quando o Karl*, vizinho que me deixava colocar seu número de telefone nos currículos para receber recados, já que eu não tinha telefone em casa, chegou dizendo que haviam ligado do Supermercado Hell e que era para eu estar lá às 16h (era 13h30min do dia 16 de dezembro, um sábado).
Tive que dispensar o papai e me dirigi correndo ao Supermercado Hell para falar com o gerente, um senhor branco, com orelhas de abano e o rosto largo, como se tivesse com os dentes inchados, chamado Adolf. Adolf me informou que o supermercado estava precisando de pessoas para trabalhar como embalador durante aquelas duas últimas semanas de dezembro para poder atender a demanda, porém não se comprometia a assinar a carteira de trabalho e nem a redigir nenhum tipo de contrato por trabalho temporário, sendo que eu receberia proporcionalmente aos dias trabalhados com base no salário mínimo da época (R$350,00) e mais R$30,00 por cada domingo trabalhado, tendo que cumprir uma jornada de trabalho que iria das 8h00 até as 18h00 em dias de semana (com 1h de intervalo para o almoço), das 8h00 até 12h00 aos sábados e de 8h00 as 14h00 aos domingos, mas na prática era obrigado a ficar até por volta das 22h00 ou 22h30 de segunda a sábado e até as 16h00 nos domingos.
Embalador é aquele carinha que coloca suas compras na sacola e as leva até o seu carro, e você fica puto porque ele não coloca bem arrumadinho as coisas no saco, porque, além de ele estar muito cansado com sua jornada de trabalho, tem um filho da puta gerente que fica apressando ele toda hora e dizendo que é para economizar nas sacolas, pois nem em toda a vida ele vai conseguir ganhar o dinheiro que o supermercado gasta por mês comprando sacolas plásticas. Eu aceitei o trabalho!
A primeira semana foi tranquila: chegava em casa quase meia-noite, tomava banho, comia algo, tomava uma dose de conhaque para aquecer a alma, fumava unzinho ouvindo um reggae, ligava para a namorada (às vezes batia uma... saudade!) e ia dormir quase 3h00 da matina para poder estar em pé as 7h00 (eu tinha o privilégio de morar perto do inferno trabalho). Mas, na segunda semana as coisas pioraram a ponto de eu sair escondido uma hora antes do meu horário habitual e ligar para a mamãe de um orelhão (quando ainda existiam aqui na Mangueirosa) e, aos prantos, dizer que não aguentava mais. Porém, mamãe me encorajou a ficar, então, como bom menino que sou, fiquei.
No fim dessa segunda semana, veio o que o Tragtenberg, que conheci nas conversas com o Amarildo por essas noites de boêmia, chama de “narcótico do grande demiurgo”: o pagamento pelos dias de trabalho, uma “gratificação” no valor de R$50,00 e uma cesta básica que tinha um vinho tão ruim que eu usei como vinagre para temperar o frango que o acompanhava. Fiquei feliz, afinal ia ter com que beber e fumar no fim de ano: “as coisas estavam melhorando pra mim”, pensei sem usar a razão (se é que isso é possível).
Entra janeiro olhando ao mesmo tempo para o ano que se foi e para o ano que vem e as coisas melhoraram um pouquinho: saiu a lista de quem iria ser contratado e de quem iria ser dispensado e o meu nome estava entre os que ficariam. Está assim na minha carteira de trabalho:
Data de admissão: 2 de janeiro de 2007
Função/Cargo: embalador
Salário: R$350,00.
Não vou negar que fiquei feliz ao ver a assinatura do empregador naquela azulzinha, e ainda fico, afinal, foi uma experiência que me ajudou a engrandecer conhecimentos e saber que a vida não é mole, mas que também basta ter coragem para poder levá-la sem grandes prejuízos. Enfim, dia 2 de janeiro de 2007 começou minha vida de funcionário do Supermercado Hell. Fui conhecendo as pessoas e vi que muitas delas estavam ali pelo o mesmo motivo que eu, embora as origens desse motivo fossem diferentes: precisavam de qualquer forma trabalhar! E eu fui desenvolvendo minhas atividades com tanta expertise, afinal ser embalador não é para qualquer um, pois se exige um grau de especialização muito alto e eu o alcancei mesmo dispensando o MBA oferecido na área pela universidade corporativa da empresa.
Enfim, meu trabalho foi reconhecido e o fato do repositor da seção de bebidas ter sido demitido por ter faltado inúmeras vezes e não ter ninguém para substituí-lo não foi o fator chave para minha promoção para aquele cargo, que ocorreu no mês de abril de 2007, mas foi registrada somente no mês de julho. Bem, estava a menos de seis meses na empresa e já tinha sido promovido: sonhei com a gerência, tinha um futuro promissor pela frente.
Ora, não era tão ruim trabalhar naquela empresa e ali eu me sentia como se estivesse com uma grande família, afinal trabalhávamos e nos víamos no mínimo 12 horas por dia e tínhamos as roupas em estados parecidos, algumas muito, outras mais ainda, mas todas rotas. Bem, em junho de 2007 meu salário já havia passado de R$350,00 para R$440,00, e com acréscimo de horas extras, que eram pagas sem registro em folha salarial, dos R$ 90,00 pagos pelos três domingos trabalhados em cada mês, lembrando que, em média, um mês tem quatro domingos. Somando tudo, recebia quase R$900,00 por mês e, como não tinha tempo para sair e gastá-lo, investia em doses de conhaque, vodka ou rum e algumas cervejas e cigarros no bar que ficava ao lado do supermercado.
Já disse que éramos uma família e, por isso, meus colegas de trabalho me acompanhavam no bar: essa era nossa única diversão até então. Até então porque depois descobri que, como o já citado Tragtenberg diz na obra que inspirou esse texto, a ação da empresa exploradora “manipula os indivíduos, infantilizando-os e pervertendo-os pelo álcool, fumo, por monopólios do Estado, pela publicidade, pornografia, baixo nível da cultura de massa”. Descobri que, da mesma forma que eu fugia do stress daquele trabalho com o álcool e alguns papelotes de maconha, a maioria de meus colegas de trabalho utilizava esses mesmos recursos e outros ainda mais sedutores: cocaína e prostitutas, por exemplo. Constatei que no fim da nossa rua tinha areia branca e, com esse elevado índice de alcoolismo e drogadição, o resultado não poderia ser outro: passei a beber mais, conheci a dama de branco e uma, não mais que isso, dama da casa da luz vermelha.
O leitor desavisado ou preconceituoso, ou desavisado e preconceituoso, que é o tipo que mais encontro em minhas andanças, pode pensar “esse R.S.R. é um pervertido, maconheiro, drogado e agora vem falar mal dessa empresa, e não sei o que, e blá, blá, blá...”. Bem, se você pensa ou pensou assim, pare por um minuto e reflita sobre tudo que até agora falei. Se mudar de ideia, pode continuar lendo à vontade, caso contrário, vai tomar no cu jogar Colheita Feliz no Orkut (me falaram que isso já tá demodê, que agora tem um tal de feicibuqui que é bem melhor. Talvez eu pare pra apreciá-lo qualquer dia desses) e me deixa em paz!
Sei que fui fraco em me envolver com essas coisas, do mesmo jeito que as outras quinze pessoas (sei que ainda tem mais, porém agora só consegui lembrar e contar quinze) que encontrei em situação parecida, mas nós tínhamos que achar uma válvula de escape para uma situação em que trabalhávamos pelo menos 12h por dia em dias normais, e, quando havia balanço ou limpeza da loja, ficávamos até as 6h00 da manhã do outro dia acordados e a empresa fornecia um lanche “reforçado” de pão com queijo, presunto e refrigerante, sendo que tínhamos que estar de volta ao trabalho às 16h desse dia em que amanhecíamos trabalhando. Fora isso, acho que poderíamos agir com maior resiliência (R.S.R. explica: resiliência é um termo originário da física e representa a capacidade que alguns materiais possuem de voltarem ao seu estado original após sofrerem alguma deformação causada por agente externo. Aplicado a pessoas, o termo expressa capacidade de lidar com situações adversas e de elevado stress sem sofrer mudanças negativas no comportamento) em algumas situações que éramos submetidos, como:
  1.  Subir nas empilhadeiras para pegar mercadorias sem usar Equipamento de Proteção Individual (EPI); 
  2. Ter que puxar, num percurso com cerca de 300 m entre o depósito e a loja, em média quatro carros por dia carregados de mercadorias com peso médio de 400 Kg cada carro; 
  3. Beber água enchida diretamente da torneira e sem tratamento, o que, inclusive, ocasionou hepatite A em mim e outros dois colegas de trabalho; 
  4. Pegar esporros e ser humilhado em público por atrasos ou outros motivos injustificáveis (o caso do Adolf ter falado que não poderíamos ganhar o tanto de dinheiro que o supermercado gastava com sacola por mês nem se trabalhássemos a vida toda relatado no início desse texto foi verídico); 
  5. Ter somente duas folgas por mês (isso quando se tinha folga, pois nos meus últimos seis meses de trabalho, tive apenas 3 folgas); 
  6. Ser punido ou advertido por se recusar a fazer hora extra; e 
  7. Atrasos nos pagamentos, com privilégios para algumas pessoas receberem antes que o restante, além da hora extra que, como falei antes, era paga sem registro na folha salarial e vinha, frequentemente, incompatível com o que a pessoa realmente trabalhou (daí a punição levantada no item acima).
Com tudo isso, eu me via sem perspectiva, embora soubesse de minha capacidade intelectual, que estava apenas dormindo e narcotizada por essa violência doce que o capitalismo utiliza, pois, mesmo assim, eu ainda gostava de trabalhar naquela empresa, seja porque era pregado que não teríamos outra escolha, seja porque foi a primeira vez que me senti dentro de uma família num ambiente de trabalho, pois meus amigos dali me respeitavam e eu os respeitava. Mas, eu não podia continuar daquele jeito, e foi então que o repositor que tinha um salário de R$480,00 quando passou a ser auxiliar direto de seu gerente, o senhor Engels, que tinha a capacidade de unir aquele grupo como um patriarca reúne a família, e que lia, enquanto puxava aquele carro com quase meia tonelada de mercadorias, as apostilas que sua namorada trazia do cursinho que fazia, conseguiu passar em Psicologia no vestibular 2008 da UFPa e, embora tenha aguentado ainda por um tempo aquela situação, teve, por meio dos conhecimentos e das amizades que fez na academia, seus olhos abertos para tudo aquilo, e conseguiu a coragem necessária para realizar sua transformação.
Primeiro, deixou a cocaína e a maconha. Depois, reduziu seu consumo de álcool (até hoje ainda bebo muito, embora tenha reduzido um pouco, e sinto muito prazer nisso. Digamos que eu seja cervejetariano). Por último, decidiu entregar seu lugar, pedindo demissão no dia 10 de outubro de 2008. Hoje, esse futuro psicólogo não se arrepende do que fez, seja ter entrado para o quadro de funcionários do Supermercado Hell, seja ter pedido demissão, e pode lhes dizer uma coisa: a educação é o melhor meio de transformação social e por ela podemos não apenas nos libertar, mas construir essa revolução que a televisão não poderá transmitir. The revolution will not be televised!
R.S.R.


* Todos os nomes constantes nesse texto são fictícios, inclusive o nome da empresa citada.

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Fora, Temer!