quarta-feira, 9 de julho de 2014

Van Gogh, a Tragédia e a Cor: Sunflowers - 3

Sunflowers - 3, Vincent van Gogh (1853-1890)

"E os homens ficam frequentemente impossibilitados de fazer algo, prisioneiros de não sei que prisão horrível, horrível, muito horrível.
Há também, eu sei, a libertação, a libertação tardia".
(Vincent van Gogh, Wasmes, julho de 1880) 
 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

A solidão da América Latina¹



Antonio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, escreveu durante sua passagem por nossa América meridional uma crônica rigorosa que sem embargo parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no dorso, e uns pássaros sem patas cujas fêmeas chocavam seus ovos nas costas do macho, e outros parecidos a alcatrazes sem língua, cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto uma criatura deforme com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo e relincho de cavalo. Contou que ao primeiro nativo que encontraram na Patagônia lhe puseram em frente um espelho, e que aquele gigante enaltecido perdeu o uso da razão por pavor de sua própria imagem.
Este livro breve e fascinante, no qual já se vislumbram os germens de nossos romances de hoje, não chega a ser nem o testemunho mais assombroso de nossa realidade daqueles tempos. Os Cronistas das Índias nos legaram outros incontáveis. Eldorado, nosso país ilusório tão cobiçado, figurou em mapas numerosos durante longos anos, mudando de lugar e de forma segundo a fantasia dos cartógrafos. Em busca da fonte da Eterna Juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou durante oito anos o norte do México, em uma expedição visionária cujos membros se comeram uns aos outros e só chegaram cinco dos 600 que a empreenderam. Um dos tantos mistérios que nunca foram decifrados é o das onze mil mulas carregadas com cem libras de ouro cada uma, que um dia saíram de Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram a seu destino. Mais tarde, durante a Colônia, se vendiam em Cartagena das Índias umas galinhas criadas em terras de aluvião, em cujas moelas se encontravam pedrinhas de ouro. Este delírio áureo de nossos fundadores nos perseguiu até faz pouco tempo. Apenas no século passado a missão alemã incumbida de estudar a construção de uma ferrovia interoceânica no istmo do Panamá, concluiu que o projeto era viável com a condição de que os trilhos não fossem feitos de ferro, que era um metal escasso na região, senão que fossem feitos de ouro.
A independência do domínio espanhol não nos pôs a salvo da demência. O general Antonio López de Santana, que foi três vezes ditador do México, fez enterrar com funerais magníficos a perna direita que havia perdido na chamada Guerra dos Pasteis. O general García Moreno governou o Equador durante 16 anos como um monarca absoluto, e seu cadáver foi velado com seu uniforme de gala e sua couraça de condecorações, sentado na cadeira presidencial. O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador que provocou o extermínio de 30 mil camponeses em uma matança bárbara, havia inventado um pêndulo para averiguar se os alimentos estavam envenenados, e fez cobrir com papel vermelho a iluminação pública para combater uma epidemia de escarlatina. O monumento ao general Francisco Morazán, erigido na praça maior de Tegucigalpa, é na realidade uma estátua do Marechal Ney comprada em Paris em um depósito de esculturas usadas.
Faz onze anos, um dos poetas insignes de nosso tempo, o chileno Pablo Neruda, iluminou este âmbito com sua palavra. Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más, irromperam desde então com mais ímpeto que nunca as notícias fantasmagóricas da América Latina, essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja obstinação sem fim se confunde com a lenda. Não tivemos um instante de sossego. Um presidente prometeico entrincheirado em seu palácio em chamas morreu lutando só contra todo um exército, e dois desastres aéreos suspeitosos e nunca esclarecidos segaram a vida de outro de coração generoso, e a de um militar democrata que havia restaurado a dignidade de seu povo. Neste lapso houve 5 guerras e 17 golpes de estado, e surgiu um ditador luceferino que em nome de Deus leva a cabo o primeiro etnocídio da América Latina em nosso tempo. Enquanto isso, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de cumprir dois anos, número maior do que aquelas que nasceram na Europa Ocidental desde 1970. Os desaparecidos por motivos da repressão são quase 120 mil, que é como se hoje não se soubesse onde estão todos os habitantes da cidade de Upsala. Numerosas mulheres arrastadas grávidas deram a luz em cárceres argentinos, mas ainda se ignora o paradeiro e a identidade de seus filhos, que foram dados em adoção clandestina ou internados em orfanatos pelas autoridades militares. Por não querer que as coisas seguissem assim, morreram cerca de 200 mil mulheres e homens em todo o continente, e mais de 100 mil pereceram em três pequenos e voluntariosos países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se isto ocorrera nos Estados Unidos, a cifra proporcional seria de 1.600.000 mortes violentas em quatro anos.
Do Chile, país de tradições hospitaleiras, fugiu um milhão de pessoas: 10 por cento de sua população. O Uruguai, uma nação minúscula de dois e meio milhões de habitantes que se considerava como o país mais civilizado do continente, perdeu no desterro a um de cada cinco cidadãos. A guerra civil em El Salvador causou desde 1979 quase um refugiado a cada 20 minutos. O país que se pudesse fazer com todos os exilados e emigrados forçados da América Latina, teria uma população mais numerosa que a Noruega.
Atrevo-me a pensar que é esta realidade descomunal, e não só sua expressão literária, a que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do papel, senão que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de desgraça e de beleza, do qual este colombiano errante e nostálgico não é mais que uma cifra mais assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, temos que pedir muito pouco à imaginação, porque o nosso maior desafio tem sido a insuficiência dos recursos convencionais para fazer crível nossa vida. Este é, amigos, o nó de nossa solidão.
Pois se estas dificuldades entorpecem a nós, que somos de sua essência, não é difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na contemplação de suas próprias culturas, se encontrem sem um método válido para nos interpretar. É compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com que medem a si mesmos, sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, que a procura da identidade própria é tão árdua e sangrenta para a gente como foi para eles. A interpretação de nossa realidade com esquemas alheios só contribui para fazer-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários. Talvez a venerável Europa fosse mais compreensiva se tratara de ver-nos em seu próprio passado. Se recordasse que Londres necessitou 300 anos para construir sua primeira muralha e outros 300 para ter um bispo, que Roma se debateu nas trevas da incerteza durante 20 séculos antes que um rei etrusco a implantara na história, e que ainda no século XVI os pacíficos suíços de hoje, que nos deleitam com seus queijos mansos e seus relógios impávidos, ensanguentaram a Europa com soldados de fortuna. Ainda no apogeu do Renascimento, 12 mil lansquenetes a soldo dos exércitos imperiais saquearam e devastaram a Roma, e passaram a faca oito mil de seus habitantes.
Não pretendo encarnar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de união entre um Norte casto e um Sul apaixonado exaltava Thomas Mann há 53 anos neste lugar. Mas creio que os europeus de espírito clarificador, os que lutam também aqui por uma pátria grande mais humana e mais justa, podiam ajudar-nos melhor se revisassem a fundo sua maneira de ver-nos. A solidariedade com nossos sonhos não nos faria sentir menos só, enquanto não se concretize com atos de respaldo legítimo aos povos que assumem a ilusão de ter uma vida própria na repartição do mundo.
A América Latina não quer nem tem por que ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental.
Não obstante, os progressos da navegação que reduziram tantas distâncias entre nossas Américas e a Europa, parecem, no entanto, ter aumentado nossa distância cultural. Por que a originalidade que se nos admite sem reservas na literatura nos é negada com toda classe de suspicácias em nossas tentativas tão difíceis de mudança social? Por que pensar que a justiça social que os europeus de vanguarda tratam de impor em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano com métodos distintos em condições diferentes? Não: a violência e a dor desmesuradas de nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conto, e não uma confabulação urdida a 3 mil léguas de nossa casa. Mas muitos dirigentes e pensadores europeus acreditaram, com o infantilismo dos avós que olvidaram as loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse possível outro destino que viver a mercê dos dois grandes donos do mundo. Este é, amigos, o tamanho de nossa solidão.
Sem embargo, frente à opressão, o saque e o abandono, nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios nem as pestes; nem a escassez de alimentos nem os cataclismos; nem sequer as guerras eternas através dos séculos e os séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte. Uma vantagem que aumenta e se acelera: a cada ano há 74 milhões mais de nascimentos que de óbitos, uma quantidade de vivos novos como para aumentar sete vezes a cada ano a população de Nova York. A maioria deles nasce nos países com menos recursos, e entre estes, por suposto, os da América Latina. No entanto, os países mais prósperos lograram acumular suficiente poder de destruição capaz de aniquilar cem vezes não só a todos os seres humanos que existiram até hoje, como a totalidade dos seres vivos que passaram por este planeta de infortúnios.
Um dia como o de hoje, meu mestre William Faulkner disse neste lugar: “Me nego a admitir o fim do homem”. Não me sentiria digno de ocupar este local que foi seu se não tivesse a consciência plena de que pela primeira vez desde as origens da humanidade, o desastre colossal que ele se negava a admitir há 32 anos é agora nada mais que uma simples possibilidade científica. Ante esta realidade surpreendente que através de todo o tempo humano deveu parecer uma utopia, nós, inventores de fábulas que em tudo cremos, nos sentimos com o direito de crer que ainda não é demasiado tarde para empreender a criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir por outros até a forma de morrer, onde deveras seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham por fim e para sempre uma segunda oportunidade sobre a Terra.
Agradeço à Academia de Letras da Suécia que tenha me distinguido com um prêmio que me coloca junto a muitos daqueles que orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de cotidiano celebrante desse delírio sem apelação que é o ofício de escrever. Seus nomes e suas obras se me apresentam hoje como sombras tutelares, mas também como o compromisso, amiúde sufocante, que se adquire com esta honra. Uma dura honra que neles me pareceu simples justiça, mas que em mim entendo como mais uma dessas lições com as que costuma surpreender-nos o destino, e que fazem mais evidente nossa condição de brinquedos de um azar indecifrável, cuja única e desoladora recompensa, costuma ser, a maioria das vezes, a incompreensão e o esquecimento.
Por isso é apenas natural que me interrogara, lá nesse âmago secreto onde habituamos transvasar com as verdades mais essenciais que conformam nossa identidade, qual tem sido o sustento constante de minha obra, o que pode haver chamado a atenção de uma maneira tão comprometedora a este tribunal de árbitros tão severos. Confesso sem falsas modéstias que não me foi fácil encontrar a razão, mas quero crer que foi a mesma que eu desejara. Quero crer, amigos, que esta é, uma vez mais, uma homenagem que se rende à poesia. À poesia por cuja virtude o inventário rotundo das naves que o velho Homero numerou em sua Ilíada está visitado por um vento que as empurra a navegar com sua presteza intemporal e alucinada. A poesia que sustenta, no delgado andaime dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. A poesia que com tão milagrosa totalidade resgata a nossa América nas Alturas de Machu Pichu de Pablo Neruda, o grande, o maior, e onde destilam sua tristeza milenária nossos melhores sonhos sem saída. A poesia, enfim, essa energia secreta da vida cotidiana, que coze grãos-de-bico no forno, e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.
Em cada linha que escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção por suas virtudes de adivinhação, e por sua permanente vitória contra os indiferentes poderes da morte. Entendo, com toda humildade, o prêmio que acabo de receber como a consoladora revelação de que meu intento não fora em vão. É por isso que convido a todos vocês a brindar pelo o que um grande poeta de nossas Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da existência do homem: a poesia. Muito obrigado.

¹ Tradução do discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura – 1982, do
escritor e jornalista colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014).
Para acessar o texto original, em espanhol, direcione-se à página da UNAM.mx.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

A apologia de Sócrates



Ganhar ou perder, mas sempre com Democracia”
(lema da Democracia Corinthiana)




A confirmação do título chegara antes do apito final. Pelo rádio e pelo telefone. Pelo abraço entre desconhecidos que compartilham um mesmo amor. Pelo toque da mulher grávida sobre seu próprio ventre. No entanto, aquele era um título que se conhecia de antes, cuja conquista havia sido executada horas anteriores ao primeiro apito, na madrugada daquele mesmo domingo e em um leito de hospital. Lá, um atleta que conseguira levar elegância e liberdade ao futebol deixara a prova de que nem sempre o verdadeiro rosto é o último.
A taça também fora levantada antes do início daquela nervosa rodada, no exato momento em que jogadores e torcedores ergueram os braços, punhos cerrados, no centro do gramado, na arquibancada ou em frente a uma televisão – gesto duro, mas que não declina da ternura e contribui para aumentar a tenaz vantagem da vida sobre a morte. A celebração de um homem especial.
Longe do estádio e daquela missa de extrema unção, em frente a um desses bares pés-sujos cujo dono é irresistivelmente mal-humorado, um garoto, Carlos, calção e camiseta rota, que mirava a transmissão da partida do meio da rua, decidira-se platonicamente ser tal qual o homem que imortalizara aquele gesto nos gramados. E um luto de alegria também decidira sair às ruas. Bêbado, barulhento, jocoso. Sofredor como um bando de loucos.
Carlos observara aquilo e mudava ali talvez não sua vida, ainda pequena para um mundo tão grande, mas pela primeira vez percebera a realidade dos que vivem convictos nos conceitos que sempre tiveram e que sempre expressaram. Dos que, por se ocuparem de coisas diversas daquelas que ocupam seus pares, ganham fama, calúnias e acusações. Eis uma beleza triste, contraditória e solitária.
Carlos então decide caminhar em direção à sua casa, exortando com o olhar todos a terem cuidado para não serem por ele, hábil no caminhar e em ler o movimento dos corpos, enganados. Também começa a especular as coisas celestes – folhas-secas, bicicletas, lençóis, dribles da vaca – e investigar as subterrâneas – a organização da Copa do Mundo, os xingamentos ao juiz, o grito de gol, a entrevista concedida pelo técnico da Canarinho, o grito racista que ainda vem das arquibancadas –, e decide tornar mais forte a razão mais débil. Assim como mudam os mundos, algo mais mudava.
Havia uma bola de meia no meio da rua. No meio da rua – da rua de terra batida onde vive – havia uma bola de meia. E dois, três garotos. E uma, duas traves feitas de pedaços de madeira fincados àquele pedaço de chão. E um convite, uma nova inspiração para seus sonhos e devaneios. Inicia-se ali um jogo simples, mas um jogo de luta, de tática, de guerra, de pés descalços pisando o chão para assim revelarem a riqueza rara que possuem. Um jogo do qual aquele garoto, de alguma maneira, agora sabe que não servirá para muita coisa se o Homem não presta.
Uma caneta, um toque para o lado, uma cara-torta matreira, o passe preciso com o calcanhar – de ouro, astúcia de mãos –, a tabelinha, e o chute forte, rente à trave-pedaço-de-pau esquerda. Explosão de alento e alegria infantil – gooooolllllll –, e o braço erguido, punho cerrado, numa humildade que sempre desdenhou dos palpites e humilha os prepotentes. A linha da bola desenhada. Uma obra-prima, imperfeita e inculta. Como deve ser, e como dizem que irritava Flaubert.
Algumas pessoas nasceram para árvore. Outras, para vento. E por mais que se tente, é inútil querer prender o vento em uma gaiola. O Dr. Sócrates, que nunca quis ser árvore, morrera naquela madrugada de domingo, ébrio de todas as convicções que cultivara e que nunca omitira. Um garoto despertou no fim da tarde daquele mesmo domingo, talvez com o pássaro azul do Velho Buk em seu coração, mas moldado para o grande e para o belo, escolhido pela vida a ser o próximo a ir disputar uma dividida – vai, artilheiro, vira o jogo! Quem vai para melhor sorte?

Texto ligeiramente modificado em 03.09.2014.

Fora, Temer!