terça-feira, 15 de março de 2011

A religiosidade na música d'O Rappa - Parte 2: Tribunais, Orixás, Lados e Palmas


Pietà (after Delacroix), 1889 - Vincent van Gogh (1853-1890)
“perto da tribo dos bonecos de pedaço de carro, feito pelo desfeito, quase criminosa solução criativa deu luz a bola de meia. e vai por ‘gato’ na internet, deu luz ao ‘surfe de trem’ e vai ganhar a copa ano que vem. pode ser tudo farinha do mesmo saco: jazz, hip-hop, skate driblando obstáculos, partido-alto, futebol e repente, ‘pé-de-macaco’, beiço, armação. pode não ser um pecado roubar um livro de william gibson com um revólver de plástico, pra poder contar pros filhos que o futuro já está na periferia dos nossos hábitos, embrulhado no resto do presente dos outros, porque: ‘o mal do urubu é pensar que o boi tá morto’”.
Marcelo Yuka – publicado no encarte do CD Rappa-Mundi (1996)

Oh, Oxalá n’Obatolá, com sua sagrada percussão, nossos trabalhos iremos começar”. Assim começa Cristo e Oxalá, 3ª faixa de Lado B Lado A, álbum lançado no ano 2000 e que deu maior expressão à obra da banda carioca O Rappa. Mostrando o sincretismo religioso presente nas religiões afro-brasileiras, Cristo e Oxalá também traz uma exaltação à louvação, não importando para qual deus, o que mostra o respeito da banda pelas diversas formas de expressões e manifestações religiosas. Sua letra retrata que a fé faz parte da cultura da banda, além de ser uma forma de salvação terrena e espiritual e de tornar-se um meio de lidar com as coisas, um jogo de cintura. É nesta música que aparece pela primeira vez na obra d’O Rappa, mais precisamente no encarte do CD, a figura do Santo da Favela, que será mais visível adiante.

Na verdade, em Lado B Lado A a religiosidade se apresenta de forma mais forte do que nos dois primeiros trabalhos do grupo, sem atingir, no entanto, seu ponto máximo. Considerado por muitos o mais importante disco da carreira da banda, Lado B Lado A vem mostrar as diferenças sociais de forma mais clara. E dentro dessas diferenças a religião possui presença, uma vez que ela é a manifestação de parte da cultura de um povo, sofrendo influência da realidade social e histórica. Assim, além de Cristo e Oxalá, as músicas Tribunal de Rua (1ª faixa), O Que Sobrou do Céu (4ª faixa) e Lado B Lado A (7ª faixa) também trazem esse lado religioso presente em suas letras e simbolismos.

Tribunal de Rua é inspirada em uma história real e retrata o abuso de poder presente em grande parte das organizações policiais brasileiras. A religião está presente nela na 3ª estrofe, mas precisamente no uso das palavras Santo Graal e devoção. O Santo Graal é considerado o elo deixado por Cristo que ligaria a humanidade a Deus, também sendo considerado por alguns a fonte do poder de Deus na Terra. Muitas versões determinam o que seria o Graal, mas as mais conhecidas versam que seria o vaso em que José de Arimateia recolheu as chagas do Cristo crucificado; a taça usada por Cristo na última ceia; ou um possível herdeiro de Cristo com Maria Madalena. Enfim, na música a palavra demonstra uma comparação entre a democracia e o Santo Graal, arriscado ao cair em mãos erradas, tal como aquela, mesmo que carregadas com devoção.

O que Sobrou do Céu vem retratar, como é recorrente na obra da banda, o lado social, mas possui religião implícita ao falar das sobras do céu, do que existe entre as cidades e nós, além de apresentar no encarte a figura de Nossa Senhora Aparecida. Em Lado B Lado A, música que dá nome ao disco, são retratadas as diferenças já mostradas nas músicas anteriores do disco, mas agora com o uso carregado de metáforas religiosas, com grande predominância do candomblé. Já no início da música verifica-se esse artifício no uso dos termos Iemanjá e Exú como antagônicos.

Muito embora Exú tenha sido criado por Iemanjá depois de ser rejeitado por Nanamburucu (Nanã – orixá do barro), que se casou com Oxalá com o objetivo de obter filhos perfeitos, mas que nasceram com problemas físicos (Obaluâe nasceu leproso, Exú aleijado e Oçãnhim, deus das folhas e dos remédios, com corpo de serpente) e por isso os jogou ao mar. Assim, o eu-lírico coloca Exú e Iemanjá em lados opostos por suas características psicológicas. Exú é intimamente ligado ao ato sexual, daí ser representado com um gorro em forma de falo. Também é ligado à comunicação (esse orixá tem facilidade de acesso aos orixás e aos humanos e, nos diversos ritos de origem africana, antes de se fazer uma oferenda a qualquer orixá deve-se primeiro despachar para Exú), ao dinheiro e ao ato de ludibriar, sendo que, segundo a mitologia nagô, enganou Oxalá (Obatalá, Obati-ala, Oba- ti-nla, rei da brancura e da pureza) quando este foi encarregado por Olorum, o deus supremo, de criar o mundo, fazendo-o dormir.

No sincretismo religioso, Exú é, de forma errada, ligado ao Diabo, que possui chifres (gorro fálico) e tenta a humanidade. Considero essa relação errada devido ao fato de que os orixás eram antropomórficos e, como tal, possuíam características humanas, não podendo, portanto, serem sempre definidos como manifestações das forças do mal ou do bem, pois sua conduta varia de acordo com a pessoa sobre as quais suas ações geram consequências e, também, das suas variações de humor.

Senhor dos caminhos e direções, daí a realização de despachos para esse orixá nas encruzilhadas, é depravado, vingativo, debochado e corrupto, dando pouco valor às regras e à ética e prestando-se tanto ao bem quanto ao mal, de acordo com seus objetivos. Por meio de Exú, que em alguns cultos afro-brasileiros torna-se escravo de Ogum, rei de Óio e deus do ferro, da guerra e da agricultura, é concretizada a maldade que um indíviduo queira exercer, mas este orixá não protege o autor da maldade quando esta gera consequências indesejáveis. Por atuar tanto para o bem quanto para o mal, adora provocar intrigas e confusões.

Por sua vez, Iemanjá é um orixá muito presente no imaginário brasileiro. Considerada rainha do mar, ela é vista como maternal e possessiva, daí também ser considerada vingativa. Base da cultura materna, Iemanjá amava Oxalá, com quem chegou a ter um caso, a despeito do matrimônio deste com Nanã, e acabou criando os filhos rejeitados desse casamento. Segundo a lenda, de seu ventre nasceu o Rio Níger e diversos orixás, dentre eles Ogum, Xangô (deus da justiça e do trovão) e Oxóssi, rei das florestas tropicais que acabou por abandonar sua mãe para viver na floresta junto a Oçãnhim. Seu traço possessivo faz com que ela acabe utilizando a chantagem emocional para que seus filhos não se afastem de si. É complacente e superprotetora. No Brasil, também é conhecida por Janaína, Iara, Sereia ou Mãe-d’Água, e os dias 1º de janeiro e 2 de fevereiro são dedicados ao seu culto (outro erro presente no sincretismo religioso adotado no Brasil é relacionar este orixá à Nossa Senhora da Conceição, dedicando o dia 8 de dezembro em sua homenagem).

Assim, a música vai mostrando alguns pontos de antogonismo entre esses dois orixás (“Se eles são Exú/Eu sou Iemanjá/Se eles matam bicho/Eu tomo banho de mar”) que culminam com a constatação do uso da mitologia negra para evidenciar as diferenças. A música também apresenta o termo corpo fechado, abordado na postagem anterior dessa série, e a enfâse na proteção da lei divina (“O que te guarda, a lei dos homens/O que me guarda, a lei de Deus”). Outro termo citado na letra da música que faz parte do contexto do candomblé é o termo despacho, evidenciando a ligação com o religioso ao ser seguido pelos termos oferendas, pedir e agradecer e culminando na última estrofe da música que deixa clara a fé no divino (“Eu sou guerreiro, sou trabalhador/E todo dia vou encarar/Com fé em Deus e na batalha/Espero estar bem longe/Quando o rodo passar”).

Além dos significados presentes nas letras das músicas, Lado B Lado A também traz traços de religiosidade presente no seu encarte, onde verifica-se uma série de desenhos que buscam ilustrar as diferenças que as músicas do CD cantam, dentre os quais São Jorge, Orixás, o Ômega e os já citados desenhos do Santo da Favela e de Nossa Senhora Aparecida, dentre outros. Assim, termino essa postagem citando o desfecho da música Cristo e Oxalá: “encerraremos nossos trabalhos saudando mamãe Oxum” (Oxum é a filha de Nanã com Oxalá que nasceu perfeita e é a deusa do ouro, da água doce e das cachoeiras, além de ser o orixá da fecundidade, sendo responsável pelo útero no corpo humano. É sincretizada como Nossa Senhora da Conceição).

Em breve nova postagem da série... Shiloh!!!!!

Para informações adicionais sobre a interpretação da lírica das músicas d'O Rappa, sugiro uma passada no Simpless, sobretudo aqui e aqui. Em relação ao entendimento das religiões afrobrasileiras, como exposto aqui, sugiro que acessem esses dois artigos da Dra. Sylvia Constant Vergara: Os orixás da administração e Orixás, indivíduos e organizações.

O Reprocesso


Night (after Millet), 1889 -Vincent van Gogh (1853-1890)
“Os pés e a pele são um só, guiados pelo 2° sistema nervoso, que a rua faz em nós. Pés que não jogam na rua, dificilmente, merecem a camisa dez. E os povos fodem, se fundem, se fodem e se confundem ao som dos mantras-RAP’s, difundidos pelos camelôs que gritam e profetizam o reprocesso da tecnologia do tão sonhado primeiro mundo. São armas que viram brinquedos que viram armas made in Rio de Janeiro. Um filho, um fígado e um travesti mais barato no mercado Black mundial. É a decepção de Santos Dumont justificada pela esperança em estado de solidão. Onde a rua vira casa, mesa e banho, formas modernas de crime se parecem com formas modernas de poder e das sucatas vem o milagre displicente que restou pra gente, a vingança coletiva de continuar em frente, desafiando qualquer religião, custo de vida, vanguarda ou tradição, pois, no final do dia, sem dar satisfação um mendigo reparte, com outro, seu pão, um velho judeu faz um novo despacho, confiando nos santos, sem magoar Israel. Um bando de crianças toma banho no chafariz da Candelária ‘cagando e andando’ ... pro bizarro. É quando a gema do caos se aproxima de Deus, colorindo géns, criando diversos mulatos, nossa melhor metade escapa num salto mortal, como fez meu ancestral, rápido como um ‘rabo-de-arraia’. Somos Angola e regional, ‘aqui e agora’ e, ... por aí a fora, a capoeira é vida e a vida é capoeira. A gente dança como se fosse luta, a gente luta como se fosse dança.”

Marcelo Yuka - texto publicado no encarte do CD O Rappa (1994)

segunda-feira, 14 de março de 2011

O Explorador do Coração

The Zouave (1888) - Vincent van Gogh (1853-1890)
E ao poeta contemporâneo já não cabe o papel de Arlequim,
Pois frente aos primeiros fatos sempre se manifesta a insanidade
De perder a modéstia ao escrever sua história,
De se por acima de toda humanidade,
De pedir para si todo Amor e toda Glória,
De escrever com um princípio, mas sem um fim.



Belém, 20 de Dezembro de 2009
(Dom Aquiles Crowley)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Substância

A Pair of Shoes (1886) - Vincent van Gogh (1853-1890)
Existem milhões de segredos ocultos!
Escondidos sob o véu de nossa 'quase ciência',
Estão contidos em nossas dúvidas, nossa ignorância e nossos cultos;
Presos ao nosso tocar, nosso sentir, nossa experiência.
São segredos do criador que a filosofia se atreve a tentar decifrar,
Mas não podem ser procurados em livros, manuscritos e epístolas,
Testemunhas de nossa ignorância,
Pois o filósofo é o experimentador da alma,
E estas, a antítese de nossa essência.

Belém, 20 de Dezembro de 2009
(Dom Aquiles Crowley)

terça-feira, 8 de março de 2011

A religiosidade na música d'O Rappa - Parte 1: Catequeses, Candidatos e Pescadores

   
“o rappa-mundi. universo onde: a diáspora, botecos, camelôs, ervas que curam e acalmam, glauber, joão saldanha, certos ditos populares, poesia dos vestígios, praias urbanas, despachos ecumênicos, ritmistas, etc... interagem com: o mega point, waly salomão, leonardo boff, diversões baratas ou emprestadas, ‘mexânicos’, comunidades virtuais, fábricas de esperanças, sebos, brechós, a corriqueira presença da violência e os olhos de iara lee. divirtam-se!” marcelo yuka
A banda carioca O Rappa é muito associada à sua atuação social e política, onde, além de manter trabalhos de Assistência Social, suas músicas são caracterizadas por letras fortes que refletem sobre a realidade do país e mostram-se como instrumentos de protesto. Com um estilo poético e musical próprio e ímpar, a banda consegue expor e falar do social de uma maneira singular, utilizando-se do contraste entre a intelectualidade e o modo simples de viver das pessoas da favela, o que deixa sua poesia rica e sofisticada, mas apresentada em uma embalagem bruta, marcada pelo uso de dialetos populares, apresentando ao mundo a riqueza cultural presente na favela, ainda que, para tanto, sejam requeridos esforços para tornar isso compreensível. Entretanto, nesse primeiro texto de uma série de quatro postagens, iremos retratar outra face dessa banda: a abordagem religiosa presente em suas letras.
Desde o inicio da banda, O Rappa carrega em sua identidade o DNA da mistura: de ritmos, de cores, de crenças. Essa mistura faz com que a banda possua originalidade em seu som, implicando aos críticos a boa dúvida sobre qual o estilo musical da banda (RAP, reggae, rock, rapcore, etc.), afinal, ela coloca em sua musicalidade riffs de guitarra, acordes pesados e, ao mesmo tempo, tons harmônicos de baixo, samplers, pontos cantados, vocais que se metamorfoseiam durante o entoar das canções, dentre outras experimentações, que tornam seu som um verdadeiro coletivo de ritmos. Particularmente, considero que a banda está inclusa como uma das principais precursoras de uma revolução da música nacional contemporânea, onde temos outros expoentes, como Racionais MC’s, Sabotage, Chico Science & Nação Zumbi, Black Alien, Planet Hemp, dentre outros. E, dentro dessa mistura, encontramos o lado religioso junto a outros temas abordados nas letras de suas composições.
Capa do CD O Rappa, 1994
Já em seu primeiro álbum, intitulado O Rappa (1994), a banda, formada inicialmente pelos músicos Marcelo Yuka (bateria), Alexandre Meneses (guitarra) - conhecido por Xandão, Nelson Meirelles (baixo), Marcelo Lobato (teclado, vocal e sampler) e Falcão (voz), demonstra essa característica. Muito embora a maioria das 16 faixas do disco carregar o lado social e político em suas letras, já encontramos em músicas como Catequeses do Medo, Brixton, Bronx ou Baixada, Candidato Câo Câo e Mitologia Gerimum a manifestação da religiosidade que, com o passar do tempo, vai se tornar mais visível e forte. A primeira música citada, por exemplo, além de criticar os mecanismos utilizados para manter a população submissa, utiliza a palavra catequese de forma metafórica, sendo tal mecanismo de utilização de metáforas religiosas como forma de protestar e refletir a realidade social recorrente na obra da banda. Além disso, durante a música são inseridos trechos de cultos religiosos diversos para tornar essa metáfora mais tangível.
Em Brixton, Bronx ou Baixada, 5ª faixa do disco, a religiosidade se apresenta mais forte, embora ainda seja utilizada para criticar metaforicamente a realidade. Em seus versos, pergunta-se “porque aprendemos tão cedo a rezar?” e “porque tantas seitas têm aqui seu lugar?”, indagações que são fruto da reflexão sobre as diferenças sociais, representadas aqui pelas diversas religiões, dentre as quais é exaltada na música a macumba (sic), religião afro-brasileira onde a poesia “se converte pelas mãos no tambor”. Nessa música, a banda demonstra a igualdade dos problemas sociais presentes não só no Brasil, mas também fora dele ao citar famosos guetos britânico, estadunidense e brasileiro, respectivamente Brixton, Bronx e Baixada Fluminense. A banda também apresenta como a religiosidade se mostra no imaginário popular: única forma de alento, onde os toques dos tambores são o único socorro promissor. Aqui nessa música já se mostra o espírito de coletividade que a banda carrega, onde são louvados diferentes ritmos musicais e, mais na frente, precisamente no ano de 2005, em seu Acústico MTV, a nova versão da música cita outras religiões, dentre as quais o candomblé e a religião católica, terminando com toques de tambores, remetendo, novamente, às religiões de matriz africana.
Candidato Câo Câo (11ª faixa), música de autoria de Walter Meninão e Pedro Butina e com participação especial do saudoso sambista Bezerra da Silva, traz, mais uma vez, a crítica a um problema social, desta vez a demagogia do político brasileiro em busca de votos. Entretanto, a religião vem em socorro do seu devoto, intervindo e desmascarando o farsante. A faixa que vem logo em seguida, Mitologia Gerimum, carrega versos que remetem ao imaginário religioso brasileiro, citando São Cristóvão, Padre Cícero e Frei Damião, e também traz o amor à ingrata terra natal. É a fé que fortalece o espírito daquele que sai de seu lugar para buscar a felicidade em outro chão.
Capa do CD Rappa-Mundi, 1996
No segundo álbum da banda (Rappa Mundi – 1996), agora com Lauro Farias no baixo no lugar de Nelson Meirelles, a religiosidade se manifesta nas músicas Ilê Ayê (4ª faixa), Hey Joe (5ª faixa), Pescador de Ilusões (6ª faixa) e Uma Ajuda (7ª faixa). Ile Ayê traz a religiosidade em seu título, uma vez que Ilê é a casa onde o culto das religiões afro-brasileiras é realizado e Ayê é o mundo em que vivemos, em contraposição ao Orum, mundo dos deuses. Música composta por Paulinho Camafeu, ela exalta a etnia negra: sua malandragem e sua filosofia. Também há nessa música um resgate do imaginário religioso brasileiro ao citar Santa Luzia, santa protetora dos olhos. Já em Hey Joe, versão elaborada por Ivo Meirelles e Marcelo Yuka da música composta por Bill Roberts e gravada por Jimi Hendrix, retrata um homem que busca fazer sua história pelo uso das armas. A religiosidade se faz presente aqui quando Marcelo D2, em participação especial, canta o seguinte verso (...) “armamento pesado, corpo fechado eu quero é mais vê (...)”, pois a expressão “corpo fechado”, no candomblé, significa que uma pessoa está protegida contra os males do mundo, em especial acidentes, moléstias, armas, venenos, enfim, aqueles que possam comprometer a integridade do corpo, sendo essa proteção obtida junto aos santos, cablocos e orixás.
Pescador de Ilusões é a faixa que mais apresenta traços de religiosidade dentre as músicas do 1° e 2° disco da banda. Presente no inconsciente coletivo brasileiro, sua letra fala sobre o ato e sacrifício de dobrar os joelhos frente às coisas nas quais temos fé. Também fala da ilusão, que consiste em um erro de percepção, nos parecendo como realidade, e que está presente em cada momento da vida, onde a “pescamos” e nos descobrimos. Ainda há a possibilidade de que, ao falar sobre isca e anzol na primeira estrofe da música, o eu-lírico esteja estabelecendo uma relação com a expressão “não temas; doravante serás pescador de homens”, supostamente, segundo o Novo Testamento da bíblia cristã, utilizada por Jesus Cristo ao chamar Pedro para segui-lo. Além disso, na última estrofe da música é citado “um livro sem final” do qual o eu-lírico cogita em catar as palavras, que pode ser interpretado como o Evangelho, pois este vem se mostrando cada vez mais sem um final claro, descobrindo-se um pouco mais sobre ele a cada dia.
Por outro lado, Uma Ajuda apresenta em um de seus versos a relação ciência-religião, separada por uma parede bem tênue, um (...) “muro fino entre a ciência e Deus” (...), o que caracteriza, mais uma vez, a presença do pensamento religioso na obra da banda, agora em contraposição ao pensamento racional-científico. Convém citar que muitas vezes o pensamento racional tira o sentido poético e religioso presente na criação humana, e isso deve ser considerado inclusive ao se fazer juízo sobre a forma como interpreto parte da obra d'O Rappa. Ainda desse disco, deve-se considerar alguns trechos da música O Homem Bomba (10ª faixa), como a alusão à transformação do sangue em vinho, na primeira estrofe, e o verso (...) “em meio a salmos, alvos e contas” (...) - neste verso, o uso da palavra conta pode estar associado tanto àquelas que devem ser quitadas, quanto às contas de um rosário -, entretanto, acredito que, embora se possa ver um pouco de referência à religião nesses dois trechos, a intenção principal da música é retratar não apenas a violência que, em certos corações, não se separa da diversão ou da religião (daí o título da música e o uso da palavra salmo, remetendo aos homens-bomba do Islã), mas também a condição do proletariado brasileiro, que a cada fim de mês inicia seu processo de explosão em busca de uma forma de sobrevivência e subsistência.

Próxima postagem em breve... 

Editado em 01 set. 2014.

Fora, Temer!