sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Sobre Na'Vis, Incas, Maias e Astecas



Dizer que o filme Avatar, escrito e dirigido por James Cameron (diretor de Titanic, Exterminador do Futuro 1 e 2, Aliens e Rambo II, entre outros) é um divisor de águas no cinema e apresenta-se como o maior orçamento de uma produção cinematográfica até o momento (US$ 500 milhões, divididos entre a execução da produção, que abocanhou cerca de US$ 237 milhões, e gastos com o desenvolvimento de novas tecnologias, marketing, propaganda, etc.) é lugar comum em grande parte da mídia e entre os críticos do cinema, iniciados e entendidos no assunto. Como não me incluo na “grande parte da mídia” e nem sou crítico de cinema, ao analisar tal produção me proponho a não atentar para detalhes técnicos, pois, afinal, não possuo conhecimentos suficientes para efetuar uma análise sob essa ótica. Logo, buscarei apresentar a percepção que a estória retratada no filme causou em mim e as conclusões que tive ao refletir sobre ela.

Confesso que o que me impulsionou a assistir o filme foi a grande expectativa gerada pelos meios de comunicação em relação à produção – afinal, houve uma promoção em massa, um verdadeiro bombardeio de marketing –, apesar de tê-lo feito com certa barreira psicológica que vez ou outra construo ao me deparar com obras artísticas onde verifico grande ação midiática, como se a intenção desta fosse enfiar goela abaixo esse ou aquele filme, livro, cantor, etc., e pelo meu gosto mais voltado para manifestações artísticas alternativas. Entretanto, com o desenrolar das cenas, esse “muro” foi desmoronando e, antes da metade do filme, eu já estava totalmente imerso no universo de Pandora, uma das luas do planeta fictício Polifemo e onde ocorre toda a estória de Avatar.

A palavra avatar tem sua origem no sânscrito, significando “descida”, “aquele que descende de Deus”, “encarnação”. Com maior relação com a religião hindu, avatar seria uma manifestação corporal de um ser imortal, um deus, principalmente os deuses supremos cultuados pelos hinduístas. Entretanto, com o tempo, outros povos e religiões também usam o termo quando se referem a manifestações terrestres de espíritos em corpos de carne. Esse é o sentido utilizado para a palavra no título do filme, uma vez que um dos fatores principais e mais presente é o uso de corpos geneticamente modificados e controlados remotamente e que são uma hibridização do DNA humano com o DNA Na'Vi, povo humanóide que mede 3 metros de altura, possui cauda, ossos reforçados com fibra de carbono e uma pele azulada bioluminescente, sendo esses corpos chamados de avatares e utilizados para possibilitar a exploração do território pandoriano, já que humanos não possuem capacidade de respirar na atmosfera do planeta, rica em dióxido de carbono, metano e amônia, além de facilitar a aproximação humana com o povo Na'Vi.

Ao refletir sobre o filme, lembrei imediatamente do que as aulas de História ensinaram sobre os povos pré-colombianos, em especial incas, maias e astecas, comparando-os, até certo ponto, com o povo Na'Vi. Ao analisar e comparar a história dos nativos pré-colombianos com a estória dos nativos de Pandora verifiquei pontos e traços interessantes, alguns análogos, outros apenas com leves semelhanças, mas que, tendo um prévio conhecimento de História e certo olhar peculiar sobre o filme, possibilitam encaixe de alguns fatos.

Inicialmente, comparei os humanos do filme aos colonizadores e navegantes europeus, ao passo que o povo Na'Vi foi comparado aos povos pré-colombianos. Tal comparação se baseia em três fatos: primeiro, que os europeus da História passaram a realizar suas navegações com o objetivo de obter novas riquezas e recursos, sobretudo ouro, especiarias e madeiras, tal objetivo exemplificado metaforicamente na lenda do El Dourado, cidade toda construída em ouro maciço que se acreditou está localizada em algum ponto no México, na Venezuela, Guiana ou até no Brasil, entre outras localidades das Américas (aliás, acredito que nunca uma cidade mudou tanto de localização como o El Dourado), enquanto os humanos de Avatar passaram a desbravar Pandora em busca do Unobtainium, precioso minério, cuja maior reserva está localizada sob a aldeia de um dos clãs daquele planeta; segundo, pois, tal como os povos pré-colombianos, os Na'Vi dividiam-se em clãs ou tribos, cada qual com territórios e características culturais e políticas próprias, e possuíam sua religião, esta bem diferente da de seus desbravadores, com seu panteão de deuses, dentre eles Eywa é a mais importante, representando o equilíbrio gerado pela interação de todos os seres vivos por meio de uma rede de milhões de conexões neurais, sendo, portanto, representação da própria Natureza; e, em terceiro lugar, pelo próprio embate que houve, em ambos os casos, pela defesa dos recursos ambicionados e pela sobrevivência da cultura e do próprio estilo de vida de pré-colombianos e Na'Vis, com, nos dois casos, os exploradores detendo um arsenal bélico e conhecimento tecnológico superior ao dos nativos.

Também vale notar que, embora em minha comparação Na'Vis e pré-colombianos estejam relacionados da mesma forma como humanos e europeus, nossos nativos eram mais desenvolvidos sob a ótica tecnológica e estrutural, já que dominavam com certa perfeição técnicas como agricultura, astronomia, comércio, cerâmica, ourivesaria, arquitetura e certa engenharia primitiva, ao passo que os Na'Vis eram povos que viviam em árvores gigantescas e sobreviviam da coleta e da caça, sendo, também, povos guerreiros. Mesmo assim, ambos tinham sua divisão social, com líderes e sacerdotes especificados e uma linha de sucessão definida, além de lendas sobre guerreiros que unificariam os clãs e tribos e derrotariam seus algozes.

Importante, também, é analisar os desfechos do filme e de nossa história. Na ficção, o final é bem mais justo do que foi na vida real, pois, embora humanos possuam um arsenal tecnológico e bélico poderoso, são derrotados pelos Na'Vis, que são liderados por Jake Sully (Sam Worthington), um ex-fuzileiro naval confinado a uma cadeira de rodas que foi selecionado para o programa Avatar em substituição ao seu irmão gêmeo morto, pois possuía genoma idêntico ao deste e, consequentemente, compatibilidade com o Avatar já produzido para o irmão. Jake não possuía nenhum conhecimento de como usar o avatar e nem da cultura e língua Na'Vi, além de apresentar alguns traços de subversão, mas conseguiu ganhar a confiança de Neytiri (Zöe Saldaña) ao ser salvo por ela de um ataque de uma criatura nativa e após ser coberto por sementes da Árvore da Vida, significando que Eywa o havia escolhido para algo. Assim, Neytiri o leva para o seu clã, os Omaticaya, onde Jake passa a aprender sobre a cultura Na'Vi e torna-se um membro do povo, além de se apaixonar por Neytiri. Quando as tropas humanas percebem que os Na'Vi não vão abandonar sua aldeia, iniciam um ataque destruidor e Jake, rejeitado pelos Na'Vi por ser considerado um traidor, domina a fera dos ares, Toruk, uma besta que só cinco Na'Vis conseguiram montar, iniciando, assim, a unificação dos clãs Na'Vi para possibilitar a derrota dos humanos, contando, ainda, com a ajuda de Eywa, que envia a fauna de Pandora para ajudar na batalha, quando esta parece perdida.

Na vida real, o cenário foi diferente. Pré-colombianos foram dizimados pelo poder de fogo superior dos europeus, embora apresentassem um maior número. Fator crucial nessa derrota foi o fato de que os nativos americanos, especificamente os astecas, terem acreditado que Hernan Cortés e seu grupo de conquistadores era a realização de uma profecia que rezava a volta do deus Quetzalcoatl do exílio para vingar-se e reclamar a cidade de Tenochtitlán, o que confundiu Montezuma, imperador asteca, e propiciou aos espanhóis dizimarem o povo asteca, mesmo estando em menor número.

Outro fato que me chamou atenção no filme, foi a maneira como é retratada a relação do homem com a Natureza. É visível que esta relação se dá de uma forma predatória, onde o homem subjuga a Natureza em favor de suas cobiças. Assim, Avatar pode representar uma projeção do que virá a ser o destino da humanidade, reservando-se, claro, as proporções da realidade, pois o filme, como megaprodução que é, busca causar impacto no expectador por meio do fantástico, tornando a realidade mais utópica. Mesmo assim, pode-se ver, apenas canalizando um pouco mais a atenção, que aspectos do filme, como a busca por riqueza em outros territórios, no caso em Pandora, ocasionada pelo esgotamento das riquezas da Terra, apresentam semelhanças com a maneira com a qual a humanidade age atualmente, procurando e explorando até a escassez as riquezas encontradas e, após o esgotamento destas, indo procurá-las em lugares cada vez mais difíceis de serem acessados, sempre deixando um rastro de desmatamento, poluição e desrespeito à Natureza, extinguindo espécies animais e riscando do mapa grupos étnicos que se apresentam frente aos seus objetivos.

Logo, espero que possamos aprender não apenas com este filme ou outros que virão, mas, principalmente, com nossos próprios atos e erros, para que, no futuro, possamos desenvolver nossas atividades econômicas e sociais de maneira sustentável, não apenas em relação à Natureza, mas também em relação à outras raças, crenças e culturas, pois, do contrário, será necessário um Jake Sully comandar uma pequena legião de guerreiros e, com a benevolência de Deus, fazer-nos engolir nosso poderio e nossa cobiça.

Fora, Temer!