segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"Don Durito de la Lacandona mirou seu escudeiro e disse...": o neoliberalismo visto desde a Selva Lacandona¹



Em 9 de fevereiro de 1995, o governo de Ernesto Zedillo iniciou uma incursão em território zapatista, tentando deter os dirigentes do EZLN. Os zapatistas se retraíram à montanha e evitaram a confrontação direta. É neste contexto, o de "retraimento", no qual o Sub Marcos volta a encontrar-se com Durito e juntos começam a buscar as razões do que estava ocorrendo.


Foi o décimo dia, já com menos pressão. Afastei-me um pouco para por meu abrigo e instalar-me. Eu ia olhando para cima, buscando um bom par de árvores que não tivessem galho em cima. Por isso me surpreendi quando escutei, a meus pés, uma voz que gritou: “Hey, cuidado!”.
Não vi nada ao princípio, mas me detive e esperei. Quase imediatamente se iniciou a mover uma folhinha e, debaixo dela, saiu um besouro que começou a reclamar:
- Por que não olha onde põe suas bototas? Estive a ponto de ser esmagado! - gritou.
Esse resmungo me era conhecido.
- Durito? - aventurei.
- Nabucodonosor para você! Não seja confiado! - contestou indignado o pequeno besouro.
Já não me restou dúvida.
- Durito! Já não se lembras de mim?
Durito, quero dizer, Nabucodonosor, ficou me olhando pensativo. Sacou um pequeno cachimbo de dentro de suas asas, o encheu de tabaco, acendeu e, depois de um trago grande que lhe arrancou uma tosse nada saudável, disse:
- Mmmmh, mmmh.
E logo repetiu:
- Mmmh, mmmh.
Eu sabia que isso ia tardar, por isso me sentei. Depois de vários “mmmh, mmh”, Nabucodonosor, ou seja, Durito, exclamou:
- Capitão?
- Simplesmente eu! - disse, satisfeito de ver-me reconhecido.
Durito (creio que, depois de ser reconhecido, podia chamá-lo de novo assim) começou uma série de movimentos de patas e asas que, em linguagem corporal dos besouros, vem sendo como uma dança da alegria e que a mim sempre me pareceu uma espécie de ataque de epilepsia. Depois de repetir várias vezes, com ênfases distintas, “Capitão!”, Durito se deteve ao fim e me lançou a pergunta que tanto temia:
- Tens tabaco?
- Bem, eu... - alarguei a resposta para dar-me tempo para calcular minhas reservas.
Nisso chegou Camilo e me perguntou:
- Me chamaste, Sub?
- Não, nada... Estava eu cantando e... e não te preocupes, podes ir – respondi com nervosismo.
- Ah, bom - disse Camilo e se retirou.
- Sub? - perguntou desconfiado Durito.
- Sim - lhe disse - Agora sou subcomandante.
- E isso é melhor ou pior que Capitão? - insistiu Durito.
- Pior - lhe disse e me disse.
Mudei rapidamente de tema e lhe estendi a bolsa de tabaco dizendo:
- Aqui trago um pouco.
Para receber o tabaco, Durito realizou novamente sua dança, agora repetindo “obrigado!” uma e outra vez.
Passada a euforia tabaqueira, iniciamos a complicada cerimônia de acender o cachimbo. Eu me recostei sobre a mochila e fiquei olhando Durito.
- Estás igual - lhe disse.
- Tu, por outro lado, te vês bastante maltratado - me respondeu.
- É a vida - disse tirando-lhe a importância.
Durito começou com seus “mmmh, mmh”. Depois de um tempo, me disse:
- E o quê te traz por aqui depois de tantos anos?
- Bem, estive pensando e, como não tinha nada para fazer, me disse por que não dar uma volta pelos velhos lugares e assim saudar aos amigos velhos - respondi.
- Velhas as colinas e ainda assim enverdecem! - reclamou indignado Durito.
Depois seguiu outro período de “mmmh, mmmh” e de suas miradas inquisitivas.
Eu não pude mais e lhe confessei:
- A verdade é que nos estamos retirando porque o governo lançou uma ofensiva contra a gente...
- Correste! - disse Durito.
Eu tratei de lhe explicar o que é um retraimento estratégico, uma retirada tática, e o que se me ocorreu nesse momento.
- Correste - disse Durito, agora com um suspiro.
- Bom, sim, corri, e quê? - disse irritado, mais comigo mesmo que com ele.
Durito não insistiu. Ficou calado por um bom tempo. Só o fumo dos dois cachimbos estendia sua ponte. Minutos depois disse:
- Parece que há algo mais que te incomoda, e não só isso da “retirada estratégica”.
- “Retraimento2”, “retraimento estratégico” - lhe corrigi.
Durito esperou que eu continuasse:
- A verdade é que me irrita que não estávamos preparados. E não estávamos preparados por minha culpa. Eu cri que o governo sim queria o diálogo e então havia dado a ordem de que começassem as consultas para os delegados. Quando nos atacaram, estávamos discutindo as condições do diálogo. Surpreenderam-nos. Surpreenderam-me... - disse com pena e coragem.
Durito seguia fumando, esperou que eu terminasse de lhe contar todo o ocorrido nos últimos dez dias. Quando terminei, Durito disse:
- Espera-me.
E se meteu debaixo de uma folhinha. Pouco tempo depois, saiu empurrando sua pequena mesa. Depois foi por uma cadeirinha, se sentou, sacou uns papeis e os começou a revisar com ar preocupado.
- Mmmh, mmh - dizia a cada tanto de papeis que lia. Depois de um tempo exclamou:
- Aqui está!
- Aqui está que coisa? - perguntei intrigado.
- Não me interrompas! – Durito disse sério e solene. E agregou:
- Preste atenção. Teu problema é o mesmo que muitos têm. Refere-se à doutrina econômica e social conhecida como “neoliberalismo”...
“O que me faltava... agora aulas de economia política”, pensei. Parece que Durito escutou o que pensava porque me repreendeu:
- Sssht! Esta não é uma aula qualquer! É a cátedra por excelência.
A mim me pareceu exagerado isso de “a cátedra por excelência”, mas me dispus a escutá-lo. Durito continuou depois de uns “mmmh, mmmh”.
- É um problema metateórico! Sim, vocês partem de que o “neoliberalismo” é uma doutrina. E por “vocês” me refiro aos que insistem em esquemas rígidos e quadrados como sua cabeça. Vocês pensam que o “neoliberalismo” é uma doutrina do capitalismo para enfrentar as crises econômicas que o mesmo capitalismo atribui ao “populismo”. Certo? Durito não me deixa responder.
- Claro que certo! Bem, resulta que o “neoliberalismo” não é uma teoria para enfrentar ou explicar a crise. É a crise mesma feita teoria e doutrina econômica! É dizer que o “neoliberalismo” não tem a mínima coerência, não tem planos nem perspectiva histórica. Enfim, pura merda teórica.
- Que estranho... Nunca havia escutado ou lido essa interpretação - disse com surpresa.
- Claro! Como que se me acaba de ocorrer neste instante! - disse com orgulho Durito.
- E isso que tem a ver com nossa fuga, perdão, com nosso retraimento? - perguntei duvidando já de tão nova teoria.
- Ah! Ah! Elementar, meu caro Watson Sub! Não há planos, não há perspectivas, só i-m-p-r-o-v-i-s-a-ç-ã-o. O governo não tem constância: um dia somos ricos, outro dia somos pobres, um dia quer a paz, outro dia quer a guerra, um dia jejua, outro dia se lambuza, enfim. Me explico? - me inquire Durito.
- Quase... – eu titubeio e coço a cabeça.
- E então? - pergunto ao ver que Durito não continua com sua dissertação.
- Vai explodir. Pum! Como globo que se infla demasiado. Isso não tem futuro. Vamos ganhar - disse Durito enquanto guarda seus papeis.
- Vamos? - pergunto com malícia.
- Claro que “vamos”! Está visto que não vão poder sem minha ajuda. Não, não pretendas fazer reparos. Necessitam um superassessor. Já estou aprendendo francês, por aquilo da continuidade.
Eu fico calado. Não sei o que é pior: se descobrir que nos governa a improvisação ou imaginar a Durito de supersecretário de gabinete em um improvável governo de transição.
Durito arremete:
- Te surpreendi, eh? Assim que não tenhas vergonha. Enquanto não me esmaguem com suas bototas sempre poderei clarificar-lhes o caminho a seguir no itinerário da história que, apesar das vicissitudes, há de levantar este país, porque unidos... porque unidos... Agora que me lembro: não escrevi à minha velha - Durito solta a gargalhada.
- Pensei que estavas falando sério! - finjo enfado e lhe lanço um pequeno galho. Durito se esquiva e segue rindo.
Já em calma, lhe pergunto:
- E de onde tiraste essas conclusões de que o neoliberalismo é a crise feita doutrina econômica?
- Ah! Deste livro que explica o projeto econômico 1988-1994 de Carlos Salinas de Gortari - responde e me mostra um opúsculo com o logotipo de Solidaridad3.
- Mas Salinas já não é o presidente... parece - digo com uma dúvida que me estremece.
- Já sei, mas veja quem redatou o plano - disse Durito e me assinala um nome. Eu leio:
- “Ernesto Zedillo Ponce de León” - digo surpreendido e agrego:
- De modo que não há ruptura?
- O que há é um covil de ladrões - disse, implacável, Durito.
- E então? - pergunto com verdadeiro interesse.
- Nada, que o sistema político mexicano é como esse galho de árvore que paira em cima de tua cabeça - disse Durito e eu brinco e olho para cima e vejo que, de fato, há um galho que pende ameaçador sobre minha rede. Mudo de lugar enquanto Durito segue falando:
- O sistema político mexicano apenas está preso à realidade com pedaços de ramas muito frágeis. Bastará um bom vento para que venha abaixo. Claro que, ao cair, vai passar a levar outras ramas e cuidado deve ter o que estiver sob sua sombra quando despenque!
- E se não há vento? - pergunto enquanto provo se a rede ficou bem amarrada.
- Haverá... haverá - Durito diz e fica pensativo, como se estivesse olhando para o amanhã.
Os dois ficamos pensativos. Voltamos a acender os cachimbos. O dia começava a marchar-se. Durito ficou observando minhas botas. Temeroso, perguntou:
- E quantos vêm contigo?
- Dois mais, assim que não te preocupes pelos pisões - lhe disse para tranquilizá-lo. Durito pratica a dúvida metódica como disciplina, e seguiu com seus “mmmh, mmmh”, até que soltou:
- Mas os que vêm atrás de ti, quantos são?
- Ah! Esses? Uns sessenta...
Durito não me deixou terminar:
- Sessenta! Sessenta pares de bototas em cima de minha cabeça! 120 botas da Sedena4 buscando a forma de esmagar-me! - gritou histérico.
- Espera-me, não me deixaste terminar. Não são sessenta - disse. Durito novamente interrompeu:
- Ah! Já sabia que não era possível tanta desgraça. Quantos são, pois? Lacônico, respondi:
- Sessenta mil.
- Sessenta mil! – Durito conseguiu dizer antes de sufocar-se com o fumo do cachimbo.
- Sessenta mil! - repetiu várias vezes entrecruzando com angústia suas mãozinhas e patinhas.
- Sessenta mil! - se dizia com desespero.
Eu tratei de consolá-lo. Disse-lhe que não vinham todos juntos, que era uma ofensiva com escalões, que estavam entrando por vários lados, que faltava nos encontrar, que havíamos borrado os rastros para que não nos seguissem, enfim, lhe disse tudo o que me ocorreu.
Pouco depois Durito se tranquilizou e começou de novo com seus “mmmh, mmmh”. Sacou uns papeizinhos que, segundo me dei conta, pareciam mapas e começou a fazer-me perguntas sobre a localização das tropas inimigas. Respondi-lhe o melhor que pude. A cada resposta Durito fazia marcas e anotações nos pequenos mapas. Passou um bom tempo, depois do interrogatório, dizendo “mmmh, mmmh”. Passados uns minutos, e depois de complicados cálculos (digo eu, porque usava todas suas mãozinhas e patinhas para fazer as contas) suspirou:
- O dito: usam “a bigorna e o martelo”, o “laço corrediço”, a “caça do coelho” e a manobra vertical. Elementar, vem no manual de Rangers da Escola das Américas -, se disse e me disse. E agrega:
- Mas temos uma oportunidade de sair bem dessa.
- Ah, sim? E como? - pergunto com ceticismo.
- Com um milagre - Durito diz enquanto guarda seus papeis e se encosta.
O silêncio se acomodou entre os dois e fomos deixando que a tarde chegasse por entre as ramas e bejucos. Mais tarde, quando a noite acabou de desprender-se das árvores e, voando, cobriu o céu, Durito me perguntou:
- Capitão... Capitão... Psst! Estás dormido?
- Não... Que há? - lhe respondi.
Durito pergunta envergonhado, como temendo lastimar.
- E que pensas fazer?
Eu sigo fumando, observo os cachos prateados da lua pendurados nos galhos. Solto uma voluta de fumo e lhe respondo e me respondo:
- Ganhar.

1 Este texto aparece pela primeira vez no Comunicado de 11 de março de 1995 do Ejercito Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), com o título de Durito II (El neoliberalismo visto desde la Selva Lacandona). Para escutá-lo ou baixá-lo de forma gratuita, acesse CEDOZ. Para ler sobre o primeiro encontro entre o Subcomandante Marcos e Durito, acesse o conto A história de Durito, parte 1 - dez anos antes.
2 No original o termo utilizado é repliegue. Optou-se nesta tradução em utilizar o termo retraimento com base nas definições dos termos retirada e retraimento apresentadas no Manual de campanha: glossário de termos e expressões para uso no Exército. Dessa forma, o uso do termo retraimento se justifica pelo fato desse termo, segundo adota o Exército Brasileiro, conter em si a ideia de contato com a força inimiga, enquanto retirada, o outro termo que fora cogitado no momento da tradução, é um movimento realizado sem a pressão do inimigo, contexto distinto do apresentado pelo Sub Marcos neste conto.
3Programa Nacional de Solidaridad, iniciado em 1988 durante a presidência de Salinas, destinado ao alcance de maior justiça social no México para além da transferência de recursos ou de subsídios focalizados. O programa seguiu como principal tronco da política social do governo mexicano nas administrações subsequentes com algumas modificações, inclusive em seu nome.
4Secretaría de la Defensa Nacional, órgão que, junto com a Secretaría de Marina, é encarregado da defesa do México e da educação militar.

Fora, Temer!