sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Van gogh, a Tragédia e a Cor: Portrait of Alexander Reid

Portrait of Alexander Reid, 1887, Vincent van Gogh (1853-1890)
 "Escrevo-lhe um pouco ao acaso o que me vem à pena, ficaria contente se de alguma maneira você pudesse ver em mim mais que um vagabundo"
(Vincent van Gogh, Wasmes, julho de 1880) 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Sobre salvajes*

*poema publicado no livro Un dragón y otros poemas, compilado pelo brasileiro erradicado na venezuela Luiz Carlos Neves, e distribuído gratuitamente pela Misión Cultura ¡Corazón adentro!, programa social para incentivo da leitura do governo venezuelano.
Imagem de Sebastião Salgado

Los pemones de la Gran Sabana
llaman al rocío Chirike-yeetakuú
que significa Saliva de las Estrellas.
A las lágrimas Enú-parupué
que quiere decir Guarapo de los Ojos.
Al corazón Yewán-enapué,
Semilla del Vientre.
Los waraos del Delta del Orinoco dicen Mejo-koji
el "Sol del Pecho" para nombrar el Alma.
Para decir amigo dicen Ma-jo karaisa,
"Mi otro corazón".
Y para decir olvidar dicen: Emonikitane,
que quiere decir "Perdonar".
Los muy tontos no saben lo que dicen.
Para decir Tierra dicen Madre.
Para decir Madre dicen Ternura.
Para decir Ternura dicen Entrega.
Tienen tal confusión de sentimientos
que con toda razón las buenas personas que somos
los llamamos Salvajes.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Eu, revirador de merda*

 *trecho do capítulo do livro Trilogia Suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez (abaixo)

[...]
 
Hoje não estou a fim de negócios. Tenho vinte dólares no bolso. E isso é uma fortuna. Estou pensando em reescrever aquele conto sobre o Rogelio que começava assim: "Não caguem mais no terraço, porra!" Em Cádiz não quiseram publicar porque tinha porra na primeira linha (não entendo, Dom Quixote é um catálogo de palavras assim. Bem, talvez Dom Quixote não seja um bom exemplo para a literatura. Afinal, Cervantes morreu na miséria). Eles me disseram: "É muito forte". Rá. Não sabem o que é forte. Vou reescrever o conto, mas o porra fica lá mesmo. É um porra inarredável.
Ao meu lado se senta um negro muito velho e sujo, com vontade de conversar. Diz que foi patinador da morte e marinheiro. Conheceu todos os continentes. Descia nos portos com seus patins. Até em Nova York apresentou seu espetáculo, três vezes. Levanta a camisa e me mostra umas correntes. Está tudo acorrentado no cinto: a carteira, uma faca enorme, umas sacolas de náilon com papéis e um frasco de alumínio. Aprendeu com um grego a bordo do Caiman Island. Eu o ouço um pouco, mas não. Então me despeço o mais amavelmente que posso e me sento num outro banco. Já está muito escuro e não quero ninguém por perto. Se me roubarem os vinte dólares, fico na lona.
O velho me fez perder o fio do conto do Rogelio. Escrevi há vários anos. Rogelio tinha acabado de morrer e imaginei muitas coisas da vida dele. Não é um bom conto. A realidade é melhor. Nua e crua. Tal como está na rua. Você a pega com as duas mãos e, se tiver força, ergue do chão e a deixa cair na página em branco. Pronto. É fácil. Sem retoques. Às vezes a realidade é tão dura que as pessoas não acreditam. Leem o conto e dizem: "Não, não, Pedro Juan, tem coisas aqui que não funcionam. Você forçou a mão inventando." Mas não. Nada é inventado. Só tive força para pegar toda a maçaroca de realidade e deixá-la cair de supetão em cima da página em branco.

[...]

Então preciso reescrever o conto. Agora vai ser muito mais forte. Sem mentira nenhuma. Só mudo os nomes. Este é meu ofício: revirador de merda. Ninguém gosta disso. Não tapam o nariz quando passa o caminhão de lixo? Não escondem as latas de lixo nos fundos? Não ignoram os varredores nas ruas, os coveiros, os limpadores de fossas? Não ficam enojados quando escutam a palavra carniça? Por isso também não sorriem para mim e olham para o outro lado quando me veem. Sou um revirador de merda. E não é que esteja procurando alguma coisa no meio da merda. Geralmente não encontro nada. Não posso dizer: "Ah, vejam, encontrei um brilhante na merda, ou encontrei uma boa ideia, ou encontrei um negócio bonito." Não é bem assim. Não procuro nada e não encontro nada. Portanto, não posso demonstrar que eu sou um sujeito pragmático e socialmente útil. Só faço como as crianças: cagam e depois brincam com a própria merda, cheiram, comem e se divertem, até que chega a mãe para tirá-las da merda, dar um banhinho, passar perfume e explicar que não podem mais fazer aquilo.
Mais nada. Não me interessa o que é decorativo, nem o que é belo, nem o que é doce, nem o que é delicioso. É por isso que sempre duvidei de uma escultora que foi minha mulher por algum tempo. Suas esculturas tinham paz demais para serem boas. A arte só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira pode nos mostrar a outra face do mundo, aquela que nunca vemos ou nunca queremos ver para não causar incômodos à nossa consciência.
É isso. Nada de paz e tranquilidade. Quem atinge o repouso em equilíbrio está perto demais de Deus para ser artista.
[...]

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Van Gogh, a Tragédia e a Cor: vida e aventura espiritual em curta-metragem

"Há quem fique abstraído demais, sonhador demais; talvez seja o que ocorre comigo, mas é minha culpa. Afinal, quem sabe, não havia motivo para isto. Estava abstraído, preocupado, inquieto por uma ou outra razão, mas a gente se refaz! O sonhador às vezes cai num poço, mas dizem que logo ele se reergue".
(Vincent van Gogh, Wasmes, julho de 1880)
 


Ficha técnica
Título: Van Gogh
País: França Ano: 1948
Direção e edição: Alain Resnais
Narrador: Claude Dauphin
Roteiro: Gaston Diehl e Robert Hessens
Produção: Pierre Braunberger, Gaston Diehl e Robert Hessens
Música original: Jacques Besse
Fotografia: Henry Ferrand
Versão original em francês com legendas em espanhol
Duração: 18 min.

Sinopse: o cineasta francês Alain Resnais foi convidado em 1948 a fazer um filme sobre as pinturas de Van Gogh, coincidindo com uma exposição que se estava montando em Paris. A película foi filmada inicialmente em 16 mm, mas quando o produtor Pierre Braunberger viu os resultados, pediu para Resnais refazê-lo em 35 mm. Van Gogh recebeu um prêmio na Bienal de Veneza em 1948, e também ganhou um Oscar de melhor curta-metragem (de dois rolos) em 1949.
Este filme tenta reconstruir, unicamente através de suas obras, a vida e a aventura espiritual de um dos maiores pintores modernos. O gênio e a importância de Vincent van Gogh são, hoje em dia, universalmente reconhecidos. No entanto, Van Gogh teve que lutar e trabalhar desesperadamente na miséria e em meio de uma indiferença quase total para tentar alcançar mediante sua pintura o absoluto que vislumbrava.
(Traduzido livremente da página no vimeo de Victor Hugole)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

“Se no pequeno está a força, a malandragem é fazer o simples” #1



O título desta postagem é um trecho da música Moving, que faz parte do álbum El Vecindario de Macaco, com participação de Seu Jorge. Utilizamos esta referência para ilustrar que pequenas ações, quando inseridas em nosso cotidiano, podem modificar nossa realidade ecológica para melhor. Abaixo, apresentamos uma dessas ações.



Você sabe o que é poliestireno expandido (EPS, na sigla em inglês)? Esse é o nome técnico para o que conhecemos popularmente como isopor (isopor é, na verdade, a marca registrada da Knauf Isopor Ltda), um tipo de plástico fabricado a partir de um derivado do petróleo, o estireno, após passar por um processo de polimerização.

O isopor é um material muito presente em nossas vidas, principalmente como embalagem, caixa térmica, proteção para eletrodomésticos e outros produtos frágeis, e como material aplicado na construção civil, mas possui um impacto muito alto sobre a natureza, que demora, em média, 150 anos para realizar sua degradação, e na vida nas cidades, onde, quando mal descartado, entope os esgotos. Seu descarte incorreto ocupa muito espaço nos aterros e lixões, que estão saturados e poderiam ser destinados a outros resíduos, e prejudica o solo e impede a penetração de água por sua decomposição ser muito lenta e por ser impermeável.

Entretanto, este material já é passível de reciclagem, ao contrário do que muitos (inclusive eu) pensavam, mas são pouquíssimas as localidades que realizam esse processo de reciclagem no Brasil (na região Norte do país, por exemplo, não existe nenhum tipo de organização que recicle esse material). No entanto, não podemos nos tornar refém dessa situação, que persistirá com diversos materiais enquanto convivermos em um sistema econômico que utiliza o lucro e a lucratividade como critérios únicos para realizar e fomentar inovações e tecnologias que possam reverter situações semelhantes.

Por isso, deixamos duas dicas para você. A primeira é simples e está baseada na constatação de que o isopor é usado em muitas situações em que é possível evitá-lo. Logo, para que cada um faça sua parte é necessário que se passe, por exemplo, a preferir embalagens alternativas que não sejam de isopor para produtos laticínios, frios, ovos, carnes e legumes. Pedir para que seu queijo ou presunto seja embalado somente no plástico, abrindo mão das bandejas de isopor utilizadas no supermercado, já ajuda no combate ao uso desnecessário desse material.

No entanto, nem sempre é possível declinar do uso do isopor, e, por isso, temos uma segunda dica. Para colocá-la em prática, que tal utilizar o isopor que você jogaria no lixo para servir de enchimento de almofadas ou brinquedos de pelúcia? Para isso, você deverá limpar e separar partes metálicas, de papel ou adesivos do isopor, guardando-o em sua casa até possuir uma quantidade suficiente para encher suas almofadas (uma almofada medindo 40 cm x 40 cm, por exemplo, necessita em torno de 100 bandejas pequenas de isopor).
 
Exemplo de bandejas de isopor que podem ser utilizadas

Após separar as bandejas de isopor, você deve quebrá-las ou triturá-las em pequenos pedaços (quanto menores os pedaços, melhor). O próximo passo é colocar dentro da almofada a ser preenchida uma sacola plástica, que pode ser de supermercado, e enchê-la com o isopor triturado, mas deixando-a com um pouco de folga, tanto para poder amarrá-la sem problemas, quanto para que a sacola não estoure quando se coloque algum peso sobre a almofada. Dependendo do tamanho da almofada, pode ser que você tenha que fazer esse processo com mais de uma sacola.
 
Pedaços de isopor (quanto menor que isso, melhor (: )

Preenchendo a almofada 1

Preenchendo a almofada 2
Preenchendo a almofada 3
Para finalizar, você deverá preencher os cantos da almofada com pequenos sacos plásticos ou com meias velhas cheias de isopor triturado, dando-lhe um aspecto visual de uniformidade.
Finalizando o preenchimento: lembre-se de não deixar a sacola ficar aparecendo!
Almofada finalizada!!!! (:

Lembre-se que o melhor é evitar o uso desnecessário do isopor, mas nos casos em que não puder fazer isso, a dica acima pode contribuir (o que não impede que você busque alternativas e as compartilhe com a gente). Verifique, também, se na sua cidade existe alguma cooperativa de reciclagem que trabalhe com isopor e, caso haja, quando for realizar o descarte de seu lixo reciclável, separe o isopor junto com os materiais plásticos e encaminhe para essa organização – assim você ajudará na limpeza da cidade e ainda fomentará uma fonte de renda.



FONTES:

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Meu Blog é neutro em CO2, neutralize o seu também

Hoje, descobri que um blog semelhante ao nosso Monkey Club produz quase 3,6 kg de dióxido de carbono (CO2) por ano. O CO2 é um dos principais gases apontados como causa da alteração do clima do planeta, que pode acarretar em aquecimento global, levando consequentemente ao efeito estufa. No entanto, a maioria dos blogueiros ainda ignora essa informação.
Mas, graças ao site Gesto Verde, que visa promover ações simples que façam a diferença para o meio-ambiente, nós da blogosfera podemos neutralizar o impacto dessa emissão. A ideia é simples, e por isso mesmo dará certo se a inserirmos em nosso cotidiano. A questão é que, apesar de ter relação com as mudanças climáticas, o CO2 é o gás necessário para a realização da fotossíntese das plantas, processo essencial para a manutenção de todos os seres vivos devido sintetizar carboidratos e renovar o oxigênio da atmosfera.
Por isso, o Gesto Verde possui o projeto Blog neutro em CO2!, que, em parceria com o  Programa Plante Árvore do Instituto Brasileiro de Florestas (IBF), plantará uma árvore nativa para cada blogueiro que participar do projeto ao adotar seu selo, neutralizando a emissão de CO2 de cada blog participante por meio da captura dessas moléculas de CO2 pelas árvores plantadas. O projeto, que pretende restaurar áreas desmatadas por meio do plantio de mudas nativas na região de Apucarana, faz parte de uma rede internacional de iniciativas baseadas no mesmo modelo, as quais já plantaram mais de 3 mil árvores na Europa.
Para cada blog que coloca o selo Blog neutro em CO2!, uma árvore será plantada (o que não impede que você pessoalmente plante uma árvore nativa de sua região, contribuindo um pouco mais com a Natureza).

Meu Blog é neutro em CO2, neutralize o seu também. Saiba como.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Van Gogh, a Tragédia e a Cor: Basket of Pansies on a Table

Basket of Pansies on a Table, 1886, Vincent van Gogh (1853-1890)

"Portanto, você não deve acreditar que eu renegue isto ou aquilo, sou uma espécie de fiel na minha infidelidade e, embora mudado, sou o mesmo e meu tormento não é mais do que este: no que eu poderia ser bom?"
(Vincent van Gogh, Wasmes, julho de 1880)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A microfísica da poesia

A poesia está em tudo! Creio que Foucault diria que cada um de nós é, no fundo, titular de uma certa poesia e, por isso, veicula poesia. E hoje constatei isso ao ler a matéria do Literatortura, compartilhada por Gabriel Rocha no FB, que falava sobre o Tumbrl coletivo Poesia do Google "criado para compartilhar poesias feitas a partir do sistema automático de sugestões do Google".
E, por estar um certo tempo sem publicar nada aqui no MC, resolvi fazer algo seguindo essa ideia. Desse modo, depois de um tempinho de tentativas, consegui alguns resultados legais, dos quais enviei dois (aqui e aqui) para o coletivo, e deixo abaixo um pra vocês (distinto dos que enviei ao Poesia do Google). Espero que gostem!!!


 
Clique na imagem para ampliar


sexta-feira, 22 de março de 2013

Van Gogh, a Tragédia e a Cor: Gauguins Chair

Gauguin's chair, 1888, Vincent van Gogh (1853-1890)
"[...] Entre dois seres, ele e eu, um todo vulcão e o outro fervendo também, mas de alguma forma preparava-se uma batalha.
Primeiramente achei, em tudo e por tudo, uma desordem que me chocou. A caixa de cores mal bastava para conter tubos espremidos, nunca fechados, e, apesar dessa desordem, desse desperdício, um todo brilhava na tela; também em suas palavras. Daudet, Goncourt, a Bíblia queimavam esse cérebro de holandês. [...]
[...] Tive a ideia de fazer seu retrato pintando a natureza-morta que ele tanto amava, a dos girassóis. Quando terminei, ele me disse: 'Sou eu mesmo, mas eu enlouquecido'.
Na mesma noite fomos ao café. Ele tomou um absinto leve.
De repente, ele me jogou na cara o copo e o seu conteúdo. Aparei o golpe e, pegando-o forte pelo braço, saí do café, atravessei a praça Victor Hugo e, alguns minutos depois, Vincent achava-se em sua cama, onde em alguns segundos dormiu para se levantar somente na manhã seguinte.
Ao despertar, muito calmo, ele me disse: 'Meu caro Gauguin, tenho uma vaga lembrança de que ontem à noite o ofendi'.
- Eu o perdoo de bom grado e de todo coração, mas a cena de ontem poderia se repetir, e se eu fosse atacado poderia perder as estribeiras e estrangulá-lo. Permita-me então escrever ao seu irmão para anunciar-lhe meu regresso.
Que dia, meu Deus!
Chegando a noite, acabara meu jantar e sentia a necessidade de ir sozinho respirar o ar perfumado dos loureiros em flor. Já atravessara quase inteiramente a praça Victor Hugo, quando ouvi atrás de mim um pequeno passo bem conhecido, rápido e irregular. Virei-me no exato momento em que Vincent se precipitava sobre mim com uma navalha aberta na mão. Meu olhar nesse momento deve ter sido muito poderoso, pois ele parou e, baixando a cabeça, retomou correndo o caminho de casa.
Será que fui covarde nesse momento e não deveria tê-lo desarmado e procurado acalmá-lo? Várias vezes interroguei minha consciência e não me censurei em nada.
Quem quiser que me jogue a primeira pedra. [...]
[...] Nos Monstros, Jean Dolent escreve:
'Quando Gauguin diz: Vincent, sua voz é doce'.
Não sabendo disso, mas tendo adivinhado, Jean Dolent tem razão. Sabemos por quê".

(Paul Gauguin, sobre o incidente de automutilação de Van Gogh, em seu livro Antes e Depois)

segunda-feira, 11 de março de 2013

Com uma epígrafe de Saramago

Abaixo compartilho a monografia que apresentei à Faculdade Ideal (FACI) como requisito para a obtenção do grau de bacharel em Administração.


Discreto, como a foragido convém,
caim não se aproximou para lhe desejar
as melhoras da sua saúde, afinal,
este patrão e este empregado nem
tinham chegado a conhecer-se,
é o mau que tem a divisão em classes,
cada um no seu lugar, se possível onde nasceu,
assim não haverá nenhuma maneira
de fazer amizades entre oriundos de diversos mundos.

José Saramago (1922-2010),
Caim, p. 144, 2009

Cada vez que na área do político
sois chamados de 'meus filhos',
a esfera de vossos direitos políticos desaparece.

Maurício Tragtenberg (1929-1998),
Administração, Poder e Ideologia, p. 40, 2005

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Sapatos pretos*

Grafite Venezuela patria joven, de Shak (crew Sul Oeste Unido - SOU) - obtido na Revista así somos - cuando miramos el mundo desde el barrio

Aquela não era uma chamada de emergência, mas María Rugas tinha a necessidade de confirmar as coisas que ia descobrindo, depois de 30 anos de cidadania relativa em um país de leis e acordos nebulosos. "Você sobe hoje para o barrio**?, perguntou, é que necessito que me explique um assunto de Direito".
Quando nos encontramos, María tinha uma sacola de arroz vazio. Arroz de Mercal***. O Mercal da avenida onde costumava passar uma média de três horas, quatro vezes por semana. A sacola estava cheia de manchas recentes de óleo e macarrão. María a esticava desde o centro, como se fosse a página 29 do Dom Quixote, e depois de cumprimentar-me leu o Artigo 103 da Constituição da República Bolivariana de Venezuela, ilustrado por El Tano****, no anverso de sua sacola de arroz com 10 por cento de grão partido, "o Direito à Educação".
A professora do filho de María o devolveu à sua casa porque as normas da escola exigiam sapatos pretos, e os dele tinham listras brancas que sempre camuflava com marcadores, até que a malvada chuva lhe delatou. María só queria confirmar se o Artigo 103 escrito em sua sacola de arroz, "já estava funcionando", porque ela tinha pedido uma reunião com a diretora da escola para lhe informar que uma de suas professoras estava violando um direito humano.
Acabava de ser testemunha do final da exclusão. Da de María, da de seu filho, muito provavelmente, da de toda uma comunidade. Era apenas o ano de 2005.


*Tradução livre feita por Amarildo Ferreira Júnior de trecho do artigo Un país en manos de gente real (Revista así somos, p. 49, año 5, n.º 12, abril/mayo 2012 - publicación del Sistema Masivo de Revistas del Ministerio del Poder Popular para la Cultura). Título livremente definido.
**Equivalente ao termo favela em português. Optou-se por não traduzi-lo para não perder, assim, sua significação e identificação local, já que, embora favela e barrio possuam muitas semelhanças, entre estes dois tipos urbanos existe algumas diferenças determinadas pelos distintos processos de formação de tais localidades em cada país.
***Misión Mercal (Mercado de Alimentos), um dos programas sociais do governo de Hugo Chávez destinado ao setor alimentício e vínculado ao Ministerio del Poder Popular para la Alimentación.
****Caricaturista venezuelano.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Quase um Quibungo


Imagem de Fido Nesti
Lembro de dois bandidos que viviam no Benguí, na mesma periferia em que vivi quando criança. Nunca soube seus verdadeiros nomes e só recordo que um atendia pela alcunha de Costela, enquanto o outro respondia pelo vulgo de Cola.
Era um terror vê-los pelas ruas, ao que saía correndo para dentro de casa, assustado, indo esconder-me embaixo da cama, ou da saia da mãe. Não sei bem ao certo, mas acho que eles sabiam desse terror que causavam na molecada e que isso fazia bem para esse banditismo scienciano que cultivavam por questão de classe.
Outro dia, fiquei sabendo que Costela morreu - não sei ao certo se pelo papo-amarelo dos macacos, ou se por mão de semelhante nas diferenças (quiçá, pelo próprio punhal que um dia pode ter presenteado Cola). Entretanto, com certeza foi por nossa covardia e nossa paralisação ante essa ação dessocializante que cultivamos dia após dia.
Há alguns meses atrás, saindo de uma reggada noite em frente ao rio, encontrei Cola guardando carros no estacionamento. Parei para trocar algumas ideias, e quando lhe segredei meu medo de infância, ele ofereceu-me um cigarro.

(Amarildo Ferreira Júnior)
Belém/PA 21 de janeiro de 2012

Fora, Temer!