quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Sobre salvajes*

*poema publicado no livro Un dragón y otros poemas, compilado pelo brasileiro erradicado na venezuela Luiz Carlos Neves, e distribuído gratuitamente pela Misión Cultura ¡Corazón adentro!, programa social para incentivo da leitura do governo venezuelano.
Imagem de Sebastião Salgado

Los pemones de la Gran Sabana
llaman al rocío Chirike-yeetakuú
que significa Saliva de las Estrellas.
A las lágrimas Enú-parupué
que quiere decir Guarapo de los Ojos.
Al corazón Yewán-enapué,
Semilla del Vientre.
Los waraos del Delta del Orinoco dicen Mejo-koji
el "Sol del Pecho" para nombrar el Alma.
Para decir amigo dicen Ma-jo karaisa,
"Mi otro corazón".
Y para decir olvidar dicen: Emonikitane,
que quiere decir "Perdonar".
Los muy tontos no saben lo que dicen.
Para decir Tierra dicen Madre.
Para decir Madre dicen Ternura.
Para decir Ternura dicen Entrega.
Tienen tal confusión de sentimientos
que con toda razón las buenas personas que somos
los llamamos Salvajes.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Eu, revirador de merda*

 *trecho do capítulo do livro Trilogia Suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez (abaixo)

[...]
 
Hoje não estou a fim de negócios. Tenho vinte dólares no bolso. E isso é uma fortuna. Estou pensando em reescrever aquele conto sobre o Rogelio que começava assim: "Não caguem mais no terraço, porra!" Em Cádiz não quiseram publicar porque tinha porra na primeira linha (não entendo, Dom Quixote é um catálogo de palavras assim. Bem, talvez Dom Quixote não seja um bom exemplo para a literatura. Afinal, Cervantes morreu na miséria). Eles me disseram: "É muito forte". Rá. Não sabem o que é forte. Vou reescrever o conto, mas o porra fica lá mesmo. É um porra inarredável.
Ao meu lado se senta um negro muito velho e sujo, com vontade de conversar. Diz que foi patinador da morte e marinheiro. Conheceu todos os continentes. Descia nos portos com seus patins. Até em Nova York apresentou seu espetáculo, três vezes. Levanta a camisa e me mostra umas correntes. Está tudo acorrentado no cinto: a carteira, uma faca enorme, umas sacolas de náilon com papéis e um frasco de alumínio. Aprendeu com um grego a bordo do Caiman Island. Eu o ouço um pouco, mas não. Então me despeço o mais amavelmente que posso e me sento num outro banco. Já está muito escuro e não quero ninguém por perto. Se me roubarem os vinte dólares, fico na lona.
O velho me fez perder o fio do conto do Rogelio. Escrevi há vários anos. Rogelio tinha acabado de morrer e imaginei muitas coisas da vida dele. Não é um bom conto. A realidade é melhor. Nua e crua. Tal como está na rua. Você a pega com as duas mãos e, se tiver força, ergue do chão e a deixa cair na página em branco. Pronto. É fácil. Sem retoques. Às vezes a realidade é tão dura que as pessoas não acreditam. Leem o conto e dizem: "Não, não, Pedro Juan, tem coisas aqui que não funcionam. Você forçou a mão inventando." Mas não. Nada é inventado. Só tive força para pegar toda a maçaroca de realidade e deixá-la cair de supetão em cima da página em branco.

[...]

Então preciso reescrever o conto. Agora vai ser muito mais forte. Sem mentira nenhuma. Só mudo os nomes. Este é meu ofício: revirador de merda. Ninguém gosta disso. Não tapam o nariz quando passa o caminhão de lixo? Não escondem as latas de lixo nos fundos? Não ignoram os varredores nas ruas, os coveiros, os limpadores de fossas? Não ficam enojados quando escutam a palavra carniça? Por isso também não sorriem para mim e olham para o outro lado quando me veem. Sou um revirador de merda. E não é que esteja procurando alguma coisa no meio da merda. Geralmente não encontro nada. Não posso dizer: "Ah, vejam, encontrei um brilhante na merda, ou encontrei uma boa ideia, ou encontrei um negócio bonito." Não é bem assim. Não procuro nada e não encontro nada. Portanto, não posso demonstrar que eu sou um sujeito pragmático e socialmente útil. Só faço como as crianças: cagam e depois brincam com a própria merda, cheiram, comem e se divertem, até que chega a mãe para tirá-las da merda, dar um banhinho, passar perfume e explicar que não podem mais fazer aquilo.
Mais nada. Não me interessa o que é decorativo, nem o que é belo, nem o que é doce, nem o que é delicioso. É por isso que sempre duvidei de uma escultora que foi minha mulher por algum tempo. Suas esculturas tinham paz demais para serem boas. A arte só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira pode nos mostrar a outra face do mundo, aquela que nunca vemos ou nunca queremos ver para não causar incômodos à nossa consciência.
É isso. Nada de paz e tranquilidade. Quem atinge o repouso em equilíbrio está perto demais de Deus para ser artista.
[...]

Fora, Temer!