quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Quis custodiest ipsos custodes?

Atualizado em 7 novembro de 2014.

Belém sangra, e os matadores não percebem que atiram no próprio espelho.
Belém chora, e ainda há quem peça mais mortes, pois para esses "bandido bom é bandido morto, e quem sentir pena, adota". Esquecem que, como disse Sérgio Vaz, a chacina é uma viagem que te leva mesmo você não tendo passagem. Para estes "meritocratas", existe uma régua com a qual se mede quem é melhor e quem é pior, e tudo bem se quem a utiliza é o mesmo que empunha a macaca ou dirige o camburão, que de Norte a Sul sempre tem um pouco de navio negreiro. Sendo assim, quem vigiará os vigilantes?
Já falei uma vez que não acredito na violência, afinal, o medo dá origem ao mal, como dizia Chico Science. Me recuso, portanto, a depositar minha crença na violência enquanto meio para se alcançar o fim da própria violência, e também me recuso a prescindir de minha liberdade em andar pelas ruas, mães de toda Sabedoria, por medo de uma polícia que decide quem vive e quem morre a seu bel-prazer, aplaudida de pé por quem defende a permanência desse Circo dos Horrores, dessa Fantástica Fábrica de Cadáveres. Devemos nos contentar em lavar copos e contar corpos?
As pessoas são importantes, é por meio delas que os valores são criados. Esse tipo de polícia, que se coloca acima da lei, do bem e do mal, é?

Eis a tragédia. Não a desfrute.

Com farinha e sem açúcar,

Açaí ou Barbárie

P.S.

Segundo dados da Anistia Internacional, só no ano de 2012, 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30 mil são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. É esse o perfil das vítimas de ações de extermínio como as que ocorreram em Belém na noite de terça e na madrugada de quarta-feira: jovens, negrxs/caboclxs, pobres, que vivem na periferia.
São pessoas vitimadas tanto por problemas socioeconômicos estruturais, quanto pela violência, esta mesma originária da maioria desses problemas socioeconômicos que se perpetua quando o Estado está presente quase sempre somente com sua fachada perversa. São pessoas vitimadas, portanto, por violências simbólicas e concretas, sejam estas praticadas pelos criminosos presentes nessas áreas de periferia, que são oprimidos que oprimem outros oprimidos; seja praticadas por agentes públicos, estes também oprimidos que oprimem outros oprimidos e, o que se torna agravante, investidos de prebendas burocráticas que se por um lado os transforma em representantes do Estado no momento do exercício de suas atividades, por outro lado não lhes permite que utilizem-se da própria posição que ocupam para extravasar um tipo de poder que, para o próprio bem da sociedade em geral, sem essa distinção hipócrita e moralista que define com base em preceitos sociocentristas quem é e quem não é cidadão de bem, não deveria lhes ser outorgado.
Infelizmente, ações como essas que ocorreram em Belém, que fogem da legalidade e são prenhes de uma discrição corrompida, demonstram que seus realizadores estão revestidos de uma crença de que estão acima da lei, do bem e do mal, e que por isso podem ser os julgadores e executores de um tipo de sentença, que se constitui em sentença de morte, um tipo de sentença que se não tem existência legal no Brasil, acaba por existir de forma "real", basta olhar um pouco mais com acuidade para a realidade das nossas periferias. Mais infelicidade é ver que tais ações ganham ecos de defesa por parte da população, o que se expressa nos embustes de que "bandido bom é bandido morto", "direitos humanos para humanos direitos", etc, quase sempre seguidas da expressão "e quem acha ruim, adota, leva pra casa, etc." ou dos impropérios de "defensor de bandido", "protetor de vagabundo", "quem defende bandido é porque tá se beneficiando de alguma forma", etc. Ou seja, o discurso de quem defende esses tipos de ação como sendo a panaceia para o problema da violência é, ao repetir tais frases como papagaios recalcados, medíocre e acrítico, para ficarmos somente nesses dois adjetivos.
O resultado vocês podem ver no número de pessoas mortas e no medo instalado que esvazia espaços públicos e contribui para aumentar a sensação de insegurança. E, infelizmente, todos nós somos culpados por isso. Esse sangue tá na mão de cada um de nós: de quem pede a redução da maioridade penal achando que ela vai acabar com a violência quando somente vai vitimizar quem é já é vitimizado há anos nesse país, as crianças; de quem pede que mais e mais bandidos sejam mortos e ignora que se o problema da violência não for tratado de uma outra forma "se eu morrer, nasce outro, igual ou pior ou melhor" e mais e mais sangue irá cair sobre a terra, vindo de todos os lugares; e de quem se cala diante disso, seja por medo, seja por comodidade.
Nessa tragédia, não existe inocentes; no máximo, inocentados.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

No Pará, nasceu um político fisiológico


Quando tentei responder a pergunta se o povo realmente é burro, dado os resultados do primeiro turno das eleições, acabei por terminar o texto acrescentando outra reflexão, que era justamente sobre a constituição do radialista Jefferson Lima (PP) como importante ator político, mas daqueles que têm sua importância pelos estragos e prejuízos que pode causar. E hoje a capa do Diário do Pará apresenta o referido radialista de mãos dadas com Helder Barbalho (PMDB), a quem declara apoio, depois de ter-se falado que seu apoio no segundo turno seria para o tucano Jatene, a quem já apoiava na primeira rodada dessas eleições.
Aliás, Jefferson Lima foi candidato a senador pela coligação de Jatene, minando a candidatura de Mário Couto, então detentor da vaga. Nisso Couto perdeu sua cadeira no Senado, que foi parar aos pés de Paulo Rocha, mesmo este tendo sido réu no esquema do mensalão e absolvido por falta de provas, o que, se o absolve das penas da lei, não o deveria absolver do julgamento nas urnas, afinal, falta de provas, em termos políticos, não redime qualquer candidato que seja. Políticos nunca são inocentes!
A "debandada" de Lima para o outro lado da oligarquia política paraense, mostra que Jatene alimentou político ganancioso que pode ser o principal responsável por sua derrota no segundo turno. Talvez Jatene esteja lembrando-se de quando ele próprio fora alimentado pelo agora adversário Jader Barbalho e pelo falecido coronel assassino de sem-terras Almir Gabriel, que, peitado por sua cria, rebarbou-se em eleição passada, dando apoio à Ana Júlia (PT) num pleito contra um candidato de seu partido, o já citado Jatene.
Vê-se que, em matéria de política, o Pará é dado a circularidades!
Interessante nisso tudo é que Lima diz que apoia porque não recebeu o apoio que queria e que acha que deveria receber de Jatene, o que o fez ir para os braços do PMDB, este sim um partido fisiológico por excelência. Ainda resta dúvida de que, no Pará, tanto Helder quanto Jatene são no fundo mais do mesmo que sempre causou tanto estrago para o Estado?

Eis a tragédia. Desfrute-a (ou não).

Com farinha e sem açúcar,


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A Feira do Miriti na Festa do Círio*

*Versão com ligeiras modificações do texto que publiquei na edição de hoje (09/10/10) do jornal Diário do Pará (Caderno Cidade, Espaço do Leitor, p. A2), que vocês podem conferir ao final desta postagem.
 
Foto de Amarildo Ferreira Júnior
Foto de Amarildo Ferreira Júnior (2014)
Época de festa e de celebração cultural-religiosa, o Círio de Nazaré também é a época em que os Brinquedos de Miriti de Abaetetuba trasladam-se para a capital para colorirem as ruas e integrarem a estrutura extralitúrgica da festividade. Segundo o consenso histórico, tal artesanato-artístico está presente desde o primeiro Círio, em 1793, quando ocorreu a “Feira de Produtos Regionais da Lavoura e da Indústria” no local onde hoje é a Praça Santuário e que foi o embrião do que atualmente é o Arraial de Nossa Senhora de Nazaré. Em todos esses anos, a relação que esses brinquedos que deixam nossos olhos em festa mantêm com nossa magna celebração cultural-religiosa só aumentou, tendo propiciado a criação de feira própria.
Inicialmente na Praça do Carmo, local onde se deram os primeiros ajuntamentos espontâneos dos artesãos de miriti e suas girândolas durante a quadra nazarena, a feira já ocorreu também na Praça da Sé e, posteriormente, na Praça Waldemar Henrique, onde permaneceu por muito tempo, até ser transferida para a Praça D. Pedro II no ano passado, após separar-se da feira que o Sebrae ainda mantém na antiga Praça Kennedy.
A Feira do Artesanato de Miriti deste ano será inaugurada às 18h00 desta quinta-feira que antecede o Círio, após Cerimônia de Abertura na Catedral da Sé. Com a temática “Girândolas de Abaeté no Círio de Nazaré”, está sendo realizada pelo esforço conjunto dos artesãos de miriti, por meio da Associação dos Artesãos de Brinquedos e Artesanatos de Miriti (Asamab), com recursos obtidos por meio de emenda parlamentar com execução da superintendência estadual do Iphan. Segundo estimativas da Asamab e da Emater, só durante o Círio de Nazaré o artesanato de miriti movimenta cerca de 200 artesãos, gera trabalho para um número entre 600 e 800 pessoas em 38 comunidades rurais e urbanas de Abaetetuba, e comercializa em torno de 400 mil peças, gerando uma renda situada entre R$ 2 e R$ 4 milhões. Além disso, essa atividade ainda contribui para a preservação do miriti e de essências florestais em uma área com cerca de 800 hectares.
Mesmo assim, falta coerência do Governo do Estado em suas políticas voltadas à cultura, pois seria sensato que garantisse em seus próximos orçamentos recursos destinados para a valorização desse tipo de artesanato tão particular, uma vez que mesmo com seu reconhecimento como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Pará por meio de duas leis (Lei n.º 7.282/2009, para o MiritiFestival; e Lei n.º 7.433/2010, para os Brinquedos de Miriti), parece-nos que é considerado mais útil como ilustração de algumas das propagandas oficiais do que como expressão cultural com vastas importâncias sociais e econômicas para o Estado. E isso deve se estender também aos outros patrimônios culturais que o Estado reconheceu. Afinal, qual é a lógica das políticas culturais estaduais para tais patrimônios?

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O povo realmente é burro?




Cartum d0 Henfil (retirado do livro "Henfil nas eleições")

Madrugada de terça-feira e resolvi escrever sobre um incômodo que me importuna cada vez mais desde os resultados do primeiro turno das Eleições 2014. É algo ao qual estou sensível nos últimos dias, embora já o tenha reproduzido no passado: o discurso de que o povo seria burro, por isso o resultado dessas nossas eleições. É lógico que não estou contente com o que saiu das urnas, as quais definiram um aumento da quantidade de legisladores (nos níveis estaduais e federais) que podem ser "qualificados" sem receio como conservadores, alguns inclusive de reacionários. Mas daí pra repetir com soberba que "nego é burro, burro, e continua votando errado" há muita coisa a ser considerada

Vejamos o Pará, por exemplo, que elegeu para a Alepa um coronel da polícia militar, e cujo deputado federal mais votado (e de maneira expressiva) foi Éder Mauro, delegado. Expressão clara de que os eleitores estamos preocupados com a escalada da violência e insatisfeitos com as políticas públicas de segurança. Porém, eleger Éder Mauro não é continuar investindo numa política de segurança que não vem dando certo, pois a reduz à repressão e ao uso da força? Elegê-lo também não é reforçar a crença de uma violência ubíqua, mesmo sabendo-se que a violência não se distribui de forma igualitária no espaço urbano, variando em sua intensidade e qualidade dependendo do lugar onde se está e de quem ali está? Reforçando-se essa ideia só se contribui para aumentar a anemia do espaço público, encolhendo-o, deteriorando-o e restringindo-o nas cidades contemporâneas como bem mostra Marcelo Lopes de Souza em seu livro Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Essa contribuição que o Pará dá para a chamada bancada da bala será sentida nos rumos que serão dados a questões tão importantes, como a redução da maioridade penal; a descriminalização do consumo de entorpecentes e a legalização e regulamentação de sua compra e venda; a desmilitarização das polícias; a descriminalização e legalização do aborto; e a regulamentação do porte de arma, por exemplo. Claro me parece que essa maneira de tratar segurança pública somente cria impunidades seletivas  e, retomando novamente Souza, reduz a mobilidade intraurbana geral, criando e reforçando exclusões e autoexclusões. Foi o que Marcelo Yuka nos disse anos atrás sobre a dúvida que as grades dos condomínios trazem consigo, e reforçou recentemente quando disse que, junto a seu irmão, passou a temer a cidade toda vez que se fala em proteção.

Para finalizar o tema segurança pública, costumo dizer que não acredito na violência, o que pode parecer estranho com tantas notícias que nos chegam pelos mais diversos veículos da mídia, pela conversa com conhecidos ou desconhecidos, e muitas vezes também pelo revólver que nos interpela aqui e acolá, mas que nem sempre vem despido de uniforme, afinal, ainda é frequente a ocorrência de fatos que nos fazem crer que o diabo veste farda, como li num muro na esquina da Avertano Rocha com a 16 de Novembro. Mas, contraditório, não acredito nela sabendo de sua existência e convicto de que a melhor forma de combatê-la não é rendendo-lhe tributo ou depositando-lhe minha fé e meu medo. E essa a-crença, minha alétheia particular, me tem sido útil até então, pois aprendi desde cedo a não temer as ruas e acredito que quem teme as ruas não soube amá-la nem respeitá-la como fonte de sabedoria que é.

No entanto, voltemos ao tema que o título desse texto suscita. Creio que disse que estava descontente com os resultados da eleição, mas deveria ter dito que estou descontente com essa eleição, independente de seus resultados, pois mais uma vez fomos impelidos à busca do candidato menos pior para depositarmos nosso voto e a ilusão que ele carrega nesse nosso sistema de democracia representativa (Maurício Tragtenberg apresenta muito bem isso em artigo de 1982 que tomo a liberdade de não pedir licença para reproduzir aqui um trecho que, quase em tom profético, fala muito sobre o PT de hoje: "O Partido dos Trabalhadores que inicialmente constituiu esperança de valorização da auto-organização dos mesmos, ao eleger o caminho eleitoral tende a formar, em cada trabalhador vereador, deputado ou senador, um ex-trabalhador.// Se não definir com clareza seu objetivo em termos de mudança estrutural, poderá ser cooptado pelo regime transformando-se em seu 'braço esquerdo'").

Mas, somente começaram a se delinear os resultados desse primeiro turno e as redes sociais ficaram alvoroçadas como é de seu feitio, repetindo como papagaios recalcados que o povo é burro e sem memória; que o gigante acordou, bebeu água, pegou vinte centavos e dormiu; que protestamos como nunca, mas votamos como sempre; que necessitamos de vestibular político; que não adianta mais protestar depois desses resultados; e uma série de impropérios. Impropérios contra O povo, como se a culpa residisse nos outros, nas terceiras pessoas do singular e do plural, estas sendo, portanto, o povo. Ledo engano, afinal, quando se trata de política, essa ação impura e forma moderna da tragédia, não existe inocentes; no máximo, inocentados. Será que aí não está implícito um preconceito medioclassista/elitista com o popular? Tenho fortes razões para crer que sim.
E é triste ver que isso é um pensamento e um argumento reproduzido muitas vezes sem se debruçar minimamente sobre ele. Estendo a ele a mesma reflexão que fiz no texto (Foi pra rua? Vem pra urna!)?!: a de que sua reprodução pode contribuir para o desvanecimento da participação política tão importante para o impulsionamento de mudanças estruturais que nos são necessárias, com as quais nos será permitido ver uma possibilidade de não mais engolir o pior ou, quando muito, o menos pior.
O povo não é burro, talvez só esteja perdido em meio à pobreza extrema que ainda atinge cerca de 16 milhões de brasileiros; à educação em más condições físicas e qualitativas; ao pouco acesso à informação de qualidade, apesar da internet, que mesmo assim só consegue alcançar um pouco mais da metade do total da população; às condições resultantes do sistema eleitoral, que privilegia candidatos cujos bons recursos econômico-financeiros não harmonizam com seus conceitos políticos e que estimula alianças espúrias; dentre tantos outros fatores que, redutores da equidade, impossibilitam um cenário de escolha ótima.
Vejamos a Lei da Ficha Limpa, que torna inelegível candidatos que foram condenados por decisão de órgão colegiado, mesmo com possibilidade de recurso, que tiveram mandato cassado ou que renunciaram para evitar cassação. A lei é um avanço, mas incorre no depósito de confiança no seu cumprimento pleno e na realização "justa" da Justiça. Como crer cegamente nela quando há no país uma impunidade seletiva? Assim, a Lei é somente um mecanismo a ser considerado, pois o fato de ser "ficha limpa", isto é, de não ter sido tornado inelegível nos termos dessa lei, não é comprovante de idoneidade, como muitos políticos querem que acreditemos e acabam por utilizar essa própria lei para seu arsenal de marketing. Tais políticos que se orgulham de serem "ficha limpa", utilizando o termo quase como um título de nobreza inarredável do seu nome, devem entender, e nós eleitores principalmente, que ser "ficha limpa" é o mínimo necessário, sem o qual não há sequer possibilidade de candidatura, não sendo diferencial nenhum e, portanto, não deveria ser motivo de orgulho e tampouco de elemento de diferenciação na hora de escolher em quem votar. Orgulhar-se de ser "ficha limpa" é como dizer-se bom cidadão por pagar seus impostos. É orgulhar-se daquilo que é a lei o obriga a ser. E ainda assim nós eleitores somos tocados por esse discurso. Há burrice nisso? Não, o que há é pouca criticidade, e isto sim é arma de grosso calibre apontada para própria testa.
Para finalizar com uma reflexão que talvez fuja um pouco da proposta deste texto, quero expressar minha preocupação com algo nessa eleição: o despontar de um importante ator político, Jefferson Lima. Já falei sobre a demagogia a la Wlad deste que foi o segundo candidato mais votado para o cargo de senador no Pará - o qual, ouvi dizer por aí, a cada voto recebido caia uma lágrima da urna eletrônica (referência a uma propaganda em que o candidato aparece chorando tal qual crocodilo para convencer os eleitores a votarem nele).
Me preocupa sua ascensão como político que pode decidir, e sempre para o que considero como pior para nós, os resultados finais de uma eleição. Jefferson, por exemplo, ficou à frente nessas eleições de Mário Couto, tão péssimo político quanto ele, tendo 741.427 votos, ou 29,92% dos votos (ainda assim, 24,28 pontos percentuais a menos que o candidato eleito, Paulo Rocha, do PT, que, como quase todo o seu partido, sofre do que o trecho do artigo de Tragtenberg citado mais acima expressa). Nas eleições para prefeito de Belém, a qual se candidatou, Jefferson Lima obteve 99.714 votos, ou 12, 89%, ficando em terceiro lugar e tendo contribuído consideravelmente para a vitória do tucano Zenaldo Coutinho, também conhecido como Zenálcool ou Zenaldudu Coutinho Costa (belenenses entenderão).
Jefferson Lima é ganancioso, e vem tendo provas do poder político que tem, o que pode gerar péssimas surpresas para nós já nas próximas eleições municipais. E, mais do que isso, como me disse Larissa Guimarães quando lhe expressei essa minha preocupação, seu estrago certamente não se restringe aos cargos eletivos, pois a força que adquire para barganhar posições para si ou para os seus na formação do próximo governo também são preocupantes. Ao que parece, engendrou-se um político fisiológico no Pará.

Eis a tragédia. Desfrute-a (ou não).

Com farinha e sem açúcar,

sábado, 27 de setembro de 2014

Van Gogh, a Tragédia e a Cor: Bobbin Winder

Bobbin Winder, 1885, Vincent van Gogh (1853-1890)
"[...] creia-me, as 'pequenas misérias' também têm seu valor. Às vezes ficamos desolados, há momentos em que acreditamos estar no inferno, mas há ainda outras coisas, e melhores".
(Vincent van Gogh, Etten, 3 de setembro de 1881)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Apresentação - Relações de gênero e Brinquedos de Miriti no Simpósio GEPEM/UFPA

Para aqueles que tiverem interesse, abaixo compartilho os slides da apresentação do artigo "Pintando Gênero na bucha: o status da mulher no processo criativo dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba/PA", de autoria de Larissa Tuane Lima de Nascimento com minha coautoria, realizada no dia 24.09.2014, durante a sessão 1 do GT 1 - Gênero, Identidade e Cultura, do Simpósio GEPEM/UFPA: Mulheres, Gênero, Histórias e Saberes em 20 anos. Para acessar o resumo do referido artigo, clique aqui. Em breve compartilharemos o trabalho completo.


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O trabalho Apresentação do artigo "Pintando gênero na bucha: o status da mulher no processo criativo dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba/PA" de Larissa Nascimento & Amarildo Ferreira Júnior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Mixando Sérgio Vaz ou "Feliz aniversário, otário, vivi nos anos 90"

O texto a seguir é resultado da fusão de dois textos de autoria do Poeta Sérgio Vaz (Paz na periferia e Antes que seja tarde). Seu título remete a isso e a uma música de Black Alien cuja letra demonstra bem que, em muitos aspectos, os anos 90 estão de volta, como Sérgio Vaz coloca em seu texto, ou nunca se foram, como eu prefiro considerar. Deixou-se as palavras do poeta como foram encontradas nos textos de referência, e as inserções feitas estão colocadas entre [ ]. Duas exclusões foram feitas, para adequar o texto com a minha trajetória de vida, e estão assinaladas com as palavras tachadas. Assino ao final somente para deixar claro que a responsabilidade pela fusão realizada é inteiramente minha, e também que concordo com o teor nela exposto.

Poeta Sérgio Vaz (foto retirada do Facebook do escritor)

***

Se não fosse tão covarde acho que o mundo seria um lugar melhor pra viver.
Não que o mundo dependa só de mim para ser melhor, mas se o medo não fosse constante ajudaria as milhares de pessoas que agem pelo mundo como centelhas tentando criar uma labareda que incendiasse de entusiasmo a humanidade. Mas o que vejo refletido no espelho é um homem abatido diante das atrocidades que afetam as pessoas menos favorecidas.
Porque se tivesse coragem não aceitaria as crianças passarem fome, frio e abandono nas calçadas, essas que parecem fantasmas, nos assustam nos semáforos com armas na mão, nos pedem esmolas amontoadas em escolas que não ensinam, e por mais que elas chorem, somos imunes a essas lágrimas.
Você acha que se realmente tivesse coragem aceitaria uma pessoa subjugar a outra apenas pela cor da sua pele? Do seu cabelo? Um poema é quase nada disso tudo.
Sou um covarde diante da violência contra a mulher, da violência do homem contra o homem que só no Brasil são 50.000 deles arrancados à bala do nosso pacífico planeta. Que dizer da violência contra os homossexuais que são apedrejados nas calçadas das avenida elegantes?
Se homicídio fosse esporte olímpico, São Paulo [Belém, Marabá, Santarém ou Abaetetuba...] ganharia[m] medalha de ouro. Mas como não é, ficamos nós com as medalhas de sangue e de lágrimas. E pra mim, nenhuma vida vale mais do que a outra, porque quem morre, deixa mais do que saudade, deixa família, filhos, lembranças... O homicídio é um crime extremamente deselegante.
É assustador tudo que está acontecendo na periferia paulistana [belenense, marabaense, santarena, abaetetubense...], é como se voltássemos ao final dos anos 80 e início dos anos 90, onde todos tínhamos medo de sairmos às ruas e sermos executados pelo simples fato de existirmos.
Pois é, esses dias estão de volta. O medo e a morte tomou conta das ruas.
A chacina é uma viagem que te leva mesmo você não tendo passagem.
E se [eu] tivesse mais fé na minha humanidade de maneira alguma aceitaria que um Deus fosse melhor que o outro, mas sou tão covarde que nem religião tenho, e minhas mãos que não rezam, já que estão abertas, poderiam ajudar a construir um templo onde caberiam todas elas, mas eu que não tenho fé nem em mim mesmo sou incapaz de produzir esse milagre. De repartir o pão.
E porque os índios estão tão longe da minha aldeia e suas flechas não atingem meus olhos nem meu coração, não me importo que lhe tirem suas terras, sua alma, seus rios, e analfabeto de solidariedade não sei ler sinais de fumaça, eles fazendo guerra eu fumando o cachimbo da paz. Se tivesse um nome indígena seria cachorro medroso.
Se fosse o tal ser humano forte que alardeio por aí, não concordaria em aceitar famílias inteiras sem onde morar, vagando em busca de terra, ou morando em barracos de madeiras indignas pendurada nos morros, ou na beira de córregos. Não nasci na favela, mas [por isso] meu coração é de madeira, fraco.
A lei condena um homem comum que rouba outro homem comum e o enterra na masmorra moderna, mas nada faz contra aquele político corrupto que rouba milhares de pessoas apenas com uma caneta, ou duas, e que de quatro em quatro anos a gente aperta-lhes a mão, quando na verdade devíamos cuspir-lhes na cara. E eu como um juiz sem martelo não faço nada além de condená-lo ao meu não voto. É pouco, já que sei onde eles se entocam. A lei é cega, mas acho que lhe fizeram transplante de órgãos numa dessas votações secretas.
Não vejo outra forma de combater o crime, que não a educação pública de qualidade. Nós abandonamos as crianças, os professores e o ensino público, agora estamos com o cu na mão com medo dos adultos.
As Escolas públicas estão parecendo privadas, e só agora essa sociedade hipócrita está sentindo o cheiro, através desses crimes bárbaros de jovens que sangram nas calçadas quando deviam estarem suando nos bancos das universidades. Ah!, é contra as cotas raciais, né? Se quiserem podemos reservar uma cota de violência pra vocês. É, essa violência que vocês vem nos jornais, e nós, ao abrirmos as janelas... e desde sempre.
Assisto a falência da educação e o massacre contra os professores e sei que muitas vezes o resultado de ensino de qualidade mínima é presídio de segurança máxima, fico em silêncio quando a multidão desinformada pede redução da maioridade penal, porém, mal ela sabe que se não educarmos nossas crianças vão ter que prendê-las com 16 anos, depois 14, depois 12, depois, não teremos mais crianças nas ruas. E elas, as ruas, serão tão seguras que a gente vai sentir falta das crianças. Época em que os brinquedos serão visitados nos museus.
As pessoas pedem a redução da maioridade penal, eu quero o aumento da maioridade educacional.
Chega de convites para enterros e visita em presídios, quero convite para assistir formaturas.
Podem mandar tanques de guerras, aviões da FAB, invadirem favelas, matarem todos nós nas esquinas escuras da periferia, porque se não investirem na educação, vão ter que continuar matando, matando, matando...porque vocês já sabem quem morre: nós os brasileiros pobres e pretos.
Viver, ainda que doa, é melhor do que deixar saudades, porque nenhuma vida é maior que a outra. Vale tanto para o Elefante como para a formiguinha.
Estão cortando as árvores, cortand as árvore, cortan a árvore, cort árv, co á… madeiraaaaa! E aceito a cara-de-pau dos donos das serras elétricas e sei que o machado está nas minhas mãos. Depois fico abraçando o lago poluído quando na verdade deveria estar mergulhado nele, assim como os peixes mortos.
Pagos os meus impostos e sei que eles não fazem nada com eles, ainda assim faço propaganda da minha consciência tranquila. Desconfio que é essa tal consciência tranquila que está acabando com o mundo.
Calado assisto a falsa democracia deste país ilegal, sem alvará de funcionamento e sem licença pra ser pátria, e me emociono com o hino nacional cantado antes do jogo da seleção canarinho.
Perdoe-me por apenas ser poeta, e ter apenas poemas como arma, ainda que ninguém me diga, sei que isso é muito pouco, quase nada. O sangue que pulsa na veia tinha que estar nos olhos.
O Mundo gosta das pessoas neutras, mas só respeita as que tem atitude. Se não posso mudar o mundo deveria [começar] a mudar a mim mesmo.
Acho que é isso que vou fazer agora.
Antes que seja tarde.

No silêncio da noite, um grito. No grito da noite, o silêncio.

Pah! Pah! Pah!

Se puderem, tenham paz.

***
Eis a tragédia. Desfrute-a (ou não).

Com farinha e sem açúcar,

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Relações de gênero e Brinquedos de Miriti no Simpósio GEPEM/UFPA

A seguir, disponibilizamos o resumo do artigo "Pintando Gênero na bucha: o status da mulher no processo criativo dos Brinquedos de Miriti de Abaetetuba/PA", que será apresentado amanhã (24.09.2014), entre 14h e 16h15, durante a sessão 1 do GT 1 - Gênero, Identidade e Cultura, do Simpósio GEPEM/UFPA: Mulheres, Gênero, Histórias e Saberes em 20 anos. Posteriormente publicaremos aqui no MC o trabalho completo e os slides usados na apresentação.

Mais informações em: Programação, Inscrições, Caderno de Resumos, e Cronograma de apresentações.


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(Foi pra rua? Vem pra urna!)?!

Assistindo às propagandas políticas aqui no Pará, em especial para a única vaga de senador disponível, percebe-se como ainda há um discurso fortemente marcado por uma política de implantar o medo no eleitor e de esvaziamento da participação política em períodos não eleitorais. Não entrarei detalhadamente na elevada desconfiança que tenho sobre todos os candidatos - desde o pretenso exemplo de homem e gestor públicos, Simão Bendayan, que, conhecedor de marketing político que é, e sobre o qual tem obra publicada, adotou o nome político de Simão do PV, passando por todos os outros candidatos, e culminando-se no "trabalhador" Duciomar Costa (sim, se há algo sobre o qual não se pode acusar Dudu é de não ser um "trabalhador", assim mesmo entre aspas, afinal o citado chegou inclusive a exercer a atividade de médico mesmo sem pode-la, e isso, desconfio eu, é prova cabal da sua vontade de "trabalhar para o povo", e não de sua "personalidade  com desvios de padrão de normalidade", seja lá o que isso signifique). Todos estes apresentam-se como representantes do povo, seus defensores. Minha dúvida é a mesma de M. Tragtenberg: quem irá defender o povo deles, no poder?

Bem, mas há que ir-se ao discurso do medo e que demonstra-se como intenção de domesticar o protesto político. Jefferson Lima, com sua demagogia à Wlad, disse uma vez ao pedir votos que o momento era agora e, caso não votassem nele, não adiantaria nada ir reclamar com ele depois (o candidato citado é radialista, e tal posição lhe permite trasvetir-se de defensor dos interesses do povo, principalmente das camadas mais populares, das quais conseguiu o carinho com suas bravatas denuncistas que, no entanto, vê-se que foram mais úteis para o seu projeto político do que para a mitigação das mazelas que destacava).
Helenilson Pontes, vice-governador do candidato à reeleição Simão Jatene (este que desde 2004 figura como acusado em investigação do Ministério Público Federal (MPF) pelo recebimento de propina da empresa Cervejaria Paraense S.A (Cerpasa) em troca de incentivos fiscais e perdão de dívida fazendária), por sua vez, tem uma chamada em que afirma que o Pará corre o risco de escolher o senador errado novamente, o que não deixa de ter um fundo de verdade, afinal, com as opções dadas, as possibilidades de acerto, tanto à esquerda, quanto à direita, são nulas. A chamada continua, também dizendo que depois não adiantaria reclamar.
Mário Couto, para finalizar somente com estes três candidatos, também esbraveja, como é de seu feitio de péssimo ator político, que o Pará não pode escolher candidato impugnado, candidato que envergonhe o estado e ex-mensaleiro, referindo-se claramente ao candidato Paulo Rocha, do PT, mesmo sem nomeá-lo. Mas, não apresenta suas propostas, as quais parecem estar presentes na paráfrase "eu não apresento propostas, mas que as tenho, as tenho", e para esse candidato, da mesma forma que para muitos dos demais, o eleitor deve confiar que ele é a melhor opção somente porque o outro concorrente não é boa opção.
E estes são nossos candidatos, cada vez menos políticos, afinal, para eles só se pode continuar defendendo o que dizem que irão defender(?) se eles ganharem. Assim, a defesa de causas e ideias, ao menos na retórica de suas propagandas, está condicionada à ocupação do cargo eletivo que disputam. Caso percam, não adianta procurá-los, mesmo com eles jactando-se das qualidades de homens públicos que possuem e da dedicação que têm com seu ofício (sic) de político, sempre destinado à defesa do povo. Alguém dúvida de que para eles, mesmos se forem eleitos, também não adianta nada reclamar?

Aí vem o complementar dessa política do medo, que é o discurso frequente, sobretudo quando se está diante de protestos que afetem suas necessidades mais egoísticas, de que a hora de protestar é nas urnas, não podendo ser feito nada antes disso e nem depois, até que se passem quatro anos e o povo seja "autorizado" novamente a apresentar seus pontos de vista políticos. E, para completar, as próprias instituições oficiais reforçam essa ideia. Se analisarmos as propagandas destinadas a sensibilizar o eleitor a ir votar, e isto num contexto de votação obrigatória que ainda e infelizmente se mantém, fica clara tal postura. Ali apresenta-se essa ideia de que o lugar de protesto por excelência é na urna e que mesmo nesse contexto de desigualdade na detenção dos diversos tipos de capital existentes - como pode ser exemplificado com os contextos de informações oligopolizadas por mídias hegemônicas (vide a polaridade ORM/Maiorana/PSDB e RBA/Barbalho/PMDB-PT aqui no Pará, onde os dois grupos igualam-se nas mentiras e nas verdades que trocam entre si) que fazem com que os eleitores, de forma bem geral, não tenhamos as melhores condições de escolha do voto, esta prática a nós imputada de maneira quase desumana -, parece ser em nós que reside a responsabilidade final sobre os atos de corrupção.
 É a mesma lógica de outros discursos conservadores e reacionários: "bem feito ter sido assaltado. Quem mandou ficar zanzando por aí na rua?!", "mas se vestir assim, minha filha, é pedir para ser estuprada", "acho precipitação ter se manifestado contra: quanto mais se falar, mas vai ter racismo", etc. Ao que parece, se não fosse tão somente pela conduta do assaltado, da estuprada, do negro, e do eleitor, não teríamos roubos, estupros, racismo e nem corrupção no Brasil. 
Esta é a crença basilar da democracia representativa que adotamos, que urge por uma revisão e por uma democratização. Defende-se a ideia de que todos os setores da sociedade estão ali representados, mas esquece-se da ilusão que representa este dito pacto social, posto em cada agente haver um peso que lhe é próprio e que faz com que não existam condições equitativas de representatividade e de acesso às arenas públicas onde os embates políticos se dão. E aquelas arenas públicas mais próximas de nós nos são ora negadas, ora esvanecidas com esse discurso de que o protesto só pode ocorrer na urna e que depois da eleição não adianta reclamar, pois toda a sujeira feita por quem foi eleito é culpa nossa, que, envergonhados como na propaganda da Justiça Eleitoral, só poderemos mudar o quadro nas próximas eleições. E assim se vê que a atual política brasileira vira a obra de More do avesso.

Eis a tragédia. Desfrute-a (ou não).

Com farinha e sem açúcar,

Açaí ou Barbárie.

P.S: Não estou tentando dizer que não há uma responsabilidade imputada no ato de votar. Pelo contrário, acredito que na conjuntura política que nos é contemporânea, tal ato beira a desumanidade tamanha a sua responsabilidade. O que se refere aqui é que a responsabilidade política, isto é, a congruência entre retórica e ação, deve estar presente não somente nesse momento, mas em todos aqueles que se apresentarem e que se vislumbrem como oportunos e necessários para os que ali desenvolverão esta ação impura por si mesma que é a ação política. Também digo que os dois discursos apresentados em lugar de gerarem uma conscientização do eleitorado, distanciam cada vez mais dele uma participação política espontânea e livre. É lógico que há muito mais por trás do que apresentei, e inclusive no que apresentei, afinal, como disse Castoriadis, o que existe por trás das aparências são outras aparências.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Sobre Luciana Genro e o êxito do capitalismo

Eis a tragédia. Desfrute-a. Ou não.



Analisando puramente a retórica, Luciana Genro sempre eleva o nível dos debates e das entrevistas das quais participa, mesmo quando tais entrevistas têm como leitmotiv, no sentido que a dramaturgia dá a esse termo, tomar entrevistado e espectador por imbecis.
Nessa entrevista em particular, no entanto, discordo de um ponto levantado pela candidata: de que o capitalismo falhou em todos os confins e circunvizinhanças do planeta onde instalou-se.
Pelo contrário: se levarmos em consideração a essência própria desse sistema econômico, resumida por Robert Gilpin como a criação congênita e necessária para sua reprodução de ganhadores e perdedores, e acrescida, dentre tantos outros elementos, da pregação e da assunção com pouca criticidade de que a meritocracia pretensamente corrigiria os efeitos de lógica tão nefasta, o capitalismo - e isso é duro de reconhecer - obteve êxito. Mas - e enfatizo este porém -, obteve êxito pura e estritamente nos termos que lhe são próprios: exploração, alienação, exclusão, acumulação, subsunção, etc.
Dessa forma, e estimulado pela utopia concreta que a candidata cita durante a entrevista, permito-me lembrar das palavras proferidas por Don Durito de la Lacandona sobre o neoliberalismo, mistério eucarístico do capitalismo contemporâneo:
"Vocês pensam que o “neoliberalismo” é uma doutrina do capitalismo para enfrentar as crises econômicas que o mesmo capitalismo atribui ao “populismo”. Certo? [...]
- Claro que certo! Bem, resulta que o “neoliberalismo” não é uma teoria para enfrentar ou explicar a crise. É a crise mesma feita teoria e doutrina econômica! É dizer que o “neoliberalismo” não tem a mínima coerência, não tem planos nem perspectiva histórica. Enfim, pura merda teórica."


Com farinha e sem açúcar,

Açaí ou Barbárie.

Açaí ou Barbárie

Eis a tragédia:
por Amarildo Ferreira Júnior
Açaí ou Barbárie é/será um espaço para apresentar algumas de minhas reflexões políticas (e algumas não tão minhas, mas com as quais concordo com certa intensidade). Não será um espaço do qual se utilizará com uma frequência determinada, posto que a disciplina em escrever não venha sendo um dos meus fortes, como podem comprovar aqueles que esperam as continuações dos textos sobre a religiosidade na música d'O Rappa.
O nome, Açaí ou Barbárie, explicitamente inspirado na famosa frase de Rosa Luxemburgo e no grupo de pensadores socialistas libertários franceses liderados por Cornelius Castoriadis, demonstra muito sobre o pensamento que buscarei apresentar. É evidente, portanto, que proposições desses pensadores aparecerão aqui ou alhures, quase sempre talvez de forma intrínseca, juntamente com outras correntes de pensamento complementares ou mesmo que divirjam neste ou naquele ponto, tomando-se cuidado para não cair na armadilha da suspensão conciliatória que, fazedora de bricolagens, nega conflitos entre maneiras de pensar que ocupam posições e situações distintas, por mais que próximas, dentro desse campo do pensar político. Assim, figurarão por aqui, dentre outras, proposições como aquelas de pensadores cuja atividade cognitiva se direciona hasta y desde Nuestra América, em especial os zapatistas de Chiapas (já presentes aqui no MC sob a tag  contos zapatistas), e de outros intelectuais caros a este editor, sobretudo o francês Pierre Bourdieu e o brasileiro Maurício Tragtenberg.
Sabe-se do risco que se corre ao adotar essa postura, mas não se teme assumi-la, e espera-se que as críticas que se originem sejam aquelas vestidas para a boa batalha, a única que vale à pena, sobretudo quando é irracional. Não se teme os resultados de tal posicionamento sobretudo porque é de bom tom colocar o pensamento à prova da avaliação secular, e sempre deve-se duvidar daqueles autores cujos pensamentos são construídos com base em um único teórico.
Abre-se aqui, portanto, um espaço que vem desde baixo e se dirige para a esquerda. Desfrute-o. Ou não.


Com farinha e sem açúcar,

Açaí ou Barbárie.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Van Gogh, a Tragédia e a Cor: Gamin au Képi

Gamin au Képi, 1888, Vincent van Gogh (1853-1890)

"Espere, talvez algum dia você verá que eu também sou um trabalhador, e embora eu não saiba de antemão o que me será possível, espero ainda fazer alguns rabiscos onde poderia haver algo de humano. [...] O caminho é estreito, a porta é estreita, são poucos os que a encontram".
 (Vincent van Gogh, Cuesmes, 20 de agosto de 1880)

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"Don Durito de la Lacandona mirou seu escudeiro e disse...": o neoliberalismo visto desde a Selva Lacandona¹



Em 9 de fevereiro de 1995, o governo de Ernesto Zedillo iniciou uma incursão em território zapatista, tentando deter os dirigentes do EZLN. Os zapatistas se retraíram à montanha e evitaram a confrontação direta. É neste contexto, o de "retraimento", no qual o Sub Marcos volta a encontrar-se com Durito e juntos começam a buscar as razões do que estava ocorrendo.


Foi o décimo dia, já com menos pressão. Afastei-me um pouco para por meu abrigo e instalar-me. Eu ia olhando para cima, buscando um bom par de árvores que não tivessem galho em cima. Por isso me surpreendi quando escutei, a meus pés, uma voz que gritou: “Hey, cuidado!”.
Não vi nada ao princípio, mas me detive e esperei. Quase imediatamente se iniciou a mover uma folhinha e, debaixo dela, saiu um besouro que começou a reclamar:
- Por que não olha onde põe suas bototas? Estive a ponto de ser esmagado! - gritou.
Esse resmungo me era conhecido.
- Durito? - aventurei.
- Nabucodonosor para você! Não seja confiado! - contestou indignado o pequeno besouro.
Já não me restou dúvida.
- Durito! Já não se lembras de mim?
Durito, quero dizer, Nabucodonosor, ficou me olhando pensativo. Sacou um pequeno cachimbo de dentro de suas asas, o encheu de tabaco, acendeu e, depois de um trago grande que lhe arrancou uma tosse nada saudável, disse:
- Mmmmh, mmmh.
E logo repetiu:
- Mmmh, mmmh.
Eu sabia que isso ia tardar, por isso me sentei. Depois de vários “mmmh, mmh”, Nabucodonosor, ou seja, Durito, exclamou:
- Capitão?
- Simplesmente eu! - disse, satisfeito de ver-me reconhecido.
Durito (creio que, depois de ser reconhecido, podia chamá-lo de novo assim) começou uma série de movimentos de patas e asas que, em linguagem corporal dos besouros, vem sendo como uma dança da alegria e que a mim sempre me pareceu uma espécie de ataque de epilepsia. Depois de repetir várias vezes, com ênfases distintas, “Capitão!”, Durito se deteve ao fim e me lançou a pergunta que tanto temia:
- Tens tabaco?
- Bem, eu... - alarguei a resposta para dar-me tempo para calcular minhas reservas.
Nisso chegou Camilo e me perguntou:
- Me chamaste, Sub?
- Não, nada... Estava eu cantando e... e não te preocupes, podes ir – respondi com nervosismo.
- Ah, bom - disse Camilo e se retirou.
- Sub? - perguntou desconfiado Durito.
- Sim - lhe disse - Agora sou subcomandante.
- E isso é melhor ou pior que Capitão? - insistiu Durito.
- Pior - lhe disse e me disse.
Mudei rapidamente de tema e lhe estendi a bolsa de tabaco dizendo:
- Aqui trago um pouco.
Para receber o tabaco, Durito realizou novamente sua dança, agora repetindo “obrigado!” uma e outra vez.
Passada a euforia tabaqueira, iniciamos a complicada cerimônia de acender o cachimbo. Eu me recostei sobre a mochila e fiquei olhando Durito.
- Estás igual - lhe disse.
- Tu, por outro lado, te vês bastante maltratado - me respondeu.
- É a vida - disse tirando-lhe a importância.
Durito começou com seus “mmmh, mmh”. Depois de um tempo, me disse:
- E o quê te traz por aqui depois de tantos anos?
- Bem, estive pensando e, como não tinha nada para fazer, me disse por que não dar uma volta pelos velhos lugares e assim saudar aos amigos velhos - respondi.
- Velhas as colinas e ainda assim enverdecem! - reclamou indignado Durito.
Depois seguiu outro período de “mmmh, mmmh” e de suas miradas inquisitivas.
Eu não pude mais e lhe confessei:
- A verdade é que nos estamos retirando porque o governo lançou uma ofensiva contra a gente...
- Correste! - disse Durito.
Eu tratei de lhe explicar o que é um retraimento estratégico, uma retirada tática, e o que se me ocorreu nesse momento.
- Correste - disse Durito, agora com um suspiro.
- Bom, sim, corri, e quê? - disse irritado, mais comigo mesmo que com ele.
Durito não insistiu. Ficou calado por um bom tempo. Só o fumo dos dois cachimbos estendia sua ponte. Minutos depois disse:
- Parece que há algo mais que te incomoda, e não só isso da “retirada estratégica”.
- “Retraimento2”, “retraimento estratégico” - lhe corrigi.
Durito esperou que eu continuasse:
- A verdade é que me irrita que não estávamos preparados. E não estávamos preparados por minha culpa. Eu cri que o governo sim queria o diálogo e então havia dado a ordem de que começassem as consultas para os delegados. Quando nos atacaram, estávamos discutindo as condições do diálogo. Surpreenderam-nos. Surpreenderam-me... - disse com pena e coragem.
Durito seguia fumando, esperou que eu terminasse de lhe contar todo o ocorrido nos últimos dez dias. Quando terminei, Durito disse:
- Espera-me.
E se meteu debaixo de uma folhinha. Pouco tempo depois, saiu empurrando sua pequena mesa. Depois foi por uma cadeirinha, se sentou, sacou uns papeis e os começou a revisar com ar preocupado.
- Mmmh, mmh - dizia a cada tanto de papeis que lia. Depois de um tempo exclamou:
- Aqui está!
- Aqui está que coisa? - perguntei intrigado.
- Não me interrompas! – Durito disse sério e solene. E agregou:
- Preste atenção. Teu problema é o mesmo que muitos têm. Refere-se à doutrina econômica e social conhecida como “neoliberalismo”...
“O que me faltava... agora aulas de economia política”, pensei. Parece que Durito escutou o que pensava porque me repreendeu:
- Sssht! Esta não é uma aula qualquer! É a cátedra por excelência.
A mim me pareceu exagerado isso de “a cátedra por excelência”, mas me dispus a escutá-lo. Durito continuou depois de uns “mmmh, mmmh”.
- É um problema metateórico! Sim, vocês partem de que o “neoliberalismo” é uma doutrina. E por “vocês” me refiro aos que insistem em esquemas rígidos e quadrados como sua cabeça. Vocês pensam que o “neoliberalismo” é uma doutrina do capitalismo para enfrentar as crises econômicas que o mesmo capitalismo atribui ao “populismo”. Certo? Durito não me deixa responder.
- Claro que certo! Bem, resulta que o “neoliberalismo” não é uma teoria para enfrentar ou explicar a crise. É a crise mesma feita teoria e doutrina econômica! É dizer que o “neoliberalismo” não tem a mínima coerência, não tem planos nem perspectiva histórica. Enfim, pura merda teórica.
- Que estranho... Nunca havia escutado ou lido essa interpretação - disse com surpresa.
- Claro! Como que se me acaba de ocorrer neste instante! - disse com orgulho Durito.
- E isso que tem a ver com nossa fuga, perdão, com nosso retraimento? - perguntei duvidando já de tão nova teoria.
- Ah! Ah! Elementar, meu caro Watson Sub! Não há planos, não há perspectivas, só i-m-p-r-o-v-i-s-a-ç-ã-o. O governo não tem constância: um dia somos ricos, outro dia somos pobres, um dia quer a paz, outro dia quer a guerra, um dia jejua, outro dia se lambuza, enfim. Me explico? - me inquire Durito.
- Quase... – eu titubeio e coço a cabeça.
- E então? - pergunto ao ver que Durito não continua com sua dissertação.
- Vai explodir. Pum! Como globo que se infla demasiado. Isso não tem futuro. Vamos ganhar - disse Durito enquanto guarda seus papeis.
- Vamos? - pergunto com malícia.
- Claro que “vamos”! Está visto que não vão poder sem minha ajuda. Não, não pretendas fazer reparos. Necessitam um superassessor. Já estou aprendendo francês, por aquilo da continuidade.
Eu fico calado. Não sei o que é pior: se descobrir que nos governa a improvisação ou imaginar a Durito de supersecretário de gabinete em um improvável governo de transição.
Durito arremete:
- Te surpreendi, eh? Assim que não tenhas vergonha. Enquanto não me esmaguem com suas bototas sempre poderei clarificar-lhes o caminho a seguir no itinerário da história que, apesar das vicissitudes, há de levantar este país, porque unidos... porque unidos... Agora que me lembro: não escrevi à minha velha - Durito solta a gargalhada.
- Pensei que estavas falando sério! - finjo enfado e lhe lanço um pequeno galho. Durito se esquiva e segue rindo.
Já em calma, lhe pergunto:
- E de onde tiraste essas conclusões de que o neoliberalismo é a crise feita doutrina econômica?
- Ah! Deste livro que explica o projeto econômico 1988-1994 de Carlos Salinas de Gortari - responde e me mostra um opúsculo com o logotipo de Solidaridad3.
- Mas Salinas já não é o presidente... parece - digo com uma dúvida que me estremece.
- Já sei, mas veja quem redatou o plano - disse Durito e me assinala um nome. Eu leio:
- “Ernesto Zedillo Ponce de León” - digo surpreendido e agrego:
- De modo que não há ruptura?
- O que há é um covil de ladrões - disse, implacável, Durito.
- E então? - pergunto com verdadeiro interesse.
- Nada, que o sistema político mexicano é como esse galho de árvore que paira em cima de tua cabeça - disse Durito e eu brinco e olho para cima e vejo que, de fato, há um galho que pende ameaçador sobre minha rede. Mudo de lugar enquanto Durito segue falando:
- O sistema político mexicano apenas está preso à realidade com pedaços de ramas muito frágeis. Bastará um bom vento para que venha abaixo. Claro que, ao cair, vai passar a levar outras ramas e cuidado deve ter o que estiver sob sua sombra quando despenque!
- E se não há vento? - pergunto enquanto provo se a rede ficou bem amarrada.
- Haverá... haverá - Durito diz e fica pensativo, como se estivesse olhando para o amanhã.
Os dois ficamos pensativos. Voltamos a acender os cachimbos. O dia começava a marchar-se. Durito ficou observando minhas botas. Temeroso, perguntou:
- E quantos vêm contigo?
- Dois mais, assim que não te preocupes pelos pisões - lhe disse para tranquilizá-lo. Durito pratica a dúvida metódica como disciplina, e seguiu com seus “mmmh, mmmh”, até que soltou:
- Mas os que vêm atrás de ti, quantos são?
- Ah! Esses? Uns sessenta...
Durito não me deixou terminar:
- Sessenta! Sessenta pares de bototas em cima de minha cabeça! 120 botas da Sedena4 buscando a forma de esmagar-me! - gritou histérico.
- Espera-me, não me deixaste terminar. Não são sessenta - disse. Durito novamente interrompeu:
- Ah! Já sabia que não era possível tanta desgraça. Quantos são, pois? Lacônico, respondi:
- Sessenta mil.
- Sessenta mil! – Durito conseguiu dizer antes de sufocar-se com o fumo do cachimbo.
- Sessenta mil! - repetiu várias vezes entrecruzando com angústia suas mãozinhas e patinhas.
- Sessenta mil! - se dizia com desespero.
Eu tratei de consolá-lo. Disse-lhe que não vinham todos juntos, que era uma ofensiva com escalões, que estavam entrando por vários lados, que faltava nos encontrar, que havíamos borrado os rastros para que não nos seguissem, enfim, lhe disse tudo o que me ocorreu.
Pouco depois Durito se tranquilizou e começou de novo com seus “mmmh, mmmh”. Sacou uns papeizinhos que, segundo me dei conta, pareciam mapas e começou a fazer-me perguntas sobre a localização das tropas inimigas. Respondi-lhe o melhor que pude. A cada resposta Durito fazia marcas e anotações nos pequenos mapas. Passou um bom tempo, depois do interrogatório, dizendo “mmmh, mmmh”. Passados uns minutos, e depois de complicados cálculos (digo eu, porque usava todas suas mãozinhas e patinhas para fazer as contas) suspirou:
- O dito: usam “a bigorna e o martelo”, o “laço corrediço”, a “caça do coelho” e a manobra vertical. Elementar, vem no manual de Rangers da Escola das Américas -, se disse e me disse. E agrega:
- Mas temos uma oportunidade de sair bem dessa.
- Ah, sim? E como? - pergunto com ceticismo.
- Com um milagre - Durito diz enquanto guarda seus papeis e se encosta.
O silêncio se acomodou entre os dois e fomos deixando que a tarde chegasse por entre as ramas e bejucos. Mais tarde, quando a noite acabou de desprender-se das árvores e, voando, cobriu o céu, Durito me perguntou:
- Capitão... Capitão... Psst! Estás dormido?
- Não... Que há? - lhe respondi.
Durito pergunta envergonhado, como temendo lastimar.
- E que pensas fazer?
Eu sigo fumando, observo os cachos prateados da lua pendurados nos galhos. Solto uma voluta de fumo e lhe respondo e me respondo:
- Ganhar.

1 Este texto aparece pela primeira vez no Comunicado de 11 de março de 1995 do Ejercito Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), com o título de Durito II (El neoliberalismo visto desde la Selva Lacandona). Para escutá-lo ou baixá-lo de forma gratuita, acesse CEDOZ. Para ler sobre o primeiro encontro entre o Subcomandante Marcos e Durito, acesse o conto A história de Durito, parte 1 - dez anos antes.
2 No original o termo utilizado é repliegue. Optou-se nesta tradução em utilizar o termo retraimento com base nas definições dos termos retirada e retraimento apresentadas no Manual de campanha: glossário de termos e expressões para uso no Exército. Dessa forma, o uso do termo retraimento se justifica pelo fato desse termo, segundo adota o Exército Brasileiro, conter em si a ideia de contato com a força inimiga, enquanto retirada, o outro termo que fora cogitado no momento da tradução, é um movimento realizado sem a pressão do inimigo, contexto distinto do apresentado pelo Sub Marcos neste conto.
3Programa Nacional de Solidaridad, iniciado em 1988 durante a presidência de Salinas, destinado ao alcance de maior justiça social no México para além da transferência de recursos ou de subsídios focalizados. O programa seguiu como principal tronco da política social do governo mexicano nas administrações subsequentes com algumas modificações, inclusive em seu nome.
4Secretaría de la Defensa Nacional, órgão que, junto com a Secretaría de Marina, é encarregado da defesa do México e da educação militar.

Fora, Temer!