O metrô parou
O metro aumentou
Tenho medo de termômetro
Tenho medo de altura
Tenho altura de um metro e tanto
Me mato pra não morrer
Minha condição, minha condução
Meu minuto de silêncio
Os meus minutos mal somados
Sadomasoquismo são
Meu trabalho mais que forçado
Morrendo comigo na mão
[Pra dilatarmos a alma
Temos que nos desfazer
Pra nos tornarmos imortais
A gente tem que aprender a morrer
Com aquilo que fomos
E aquilo que somos nós]
(O Mérito e o Monstro - O Teatro Mágico)
Nesses últimos dias, estava lendo o livro “Administração, Poder e Ideologia”, do
Maurício Tragtenberg, para poder acrescentar algo ao meu Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC), quando encontrei com meu amigo e também notívago R.S.R.,
estudante de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPa). Fazia tempo que
não encontrava com ele e decidimos ir a um bar beber algumas e conversar um
pouco, primeiramente sobre o que cada um estava fazendo e depois sobre os temas
que sempre estavam presentes em nossas conversas pelas noites de BelHell: Política, Filosofia,
Administração, Psicologia, Sociologia e demais áreas afins. Então, conversa
vai, um gole de cerveja, conversa vem, outro gole de cerveja, R.S.R. reparou no
livro que eu estava segurando e perguntou sobre o quê a obra tratava. Eu sou
muito fascinado pela obra do Tragtenberg e já até havia falado desse autor para
o R., então, lhe apresentei o livro, explicando as principais ideias defendidas
por Tragtenberg e me detendo muito nos dois últimos capítulos da obra - Exploração do trabalho I (p. 121-157) e
Exploração do Trabalho II (p. 159-231), que tratam sobre as práticas de
exploração utilizadas pelas empresas nos meados do século XX nos Estados Unidos
e no Brasil, respectivamente.
Ao começarmos a discutir sobre as ideias
apresentadas por Tragtenberg e ambos concordando que infelizmente ainda existem
práticas semelhantes às descritas em “Administração,
Poder e Ideologia” sendo aplicadas por empresas em pleno século XXI, R.S.R.
decidiu contar-me uma experiência de exploração empresarial que passou e
testemunhou antes de entrar para o nível superior e que me deixou “pasmo e ao
mesmo tempo perplecto (sic)”, como diria
um amigo meu. Então, decidi pedir-lhe para escrever o que havia me relatado
para que pudéssemos compartilhar aqui no Club e fazer desse texto não
apenas uma manifestação e testemunho contra o capitalismo sem escrúpulos, mas
uma ode à máxima de que o conhecimento liberta.
Resultado: R.S.R. aceitou redigir o texto,
desde que sua identidade fosse mantida em sigilo por questões de segurança e
resguardo, e abaixo compartilho com vocês esse texto regado de indignação e
ironia bem medida.
Amarildo
Ferreira Júnior
Aviso importante: antes de ler saiba que ironia é
pré-requisito para entender toda a essência da mensagem desse texto, portanto,
se não a tem, leia Augusto Cury ou Paulo Coelho!
“Os tormentos ‘civilizados’ na
exploração do trabalho substituem os tormentos bárbaros do pré-capitalismo”
(Maurício Tragtenberg - Administração, Poder e ideologia, p.
163).
Era
final do ano de 2006. Eu estava desempregado e aquele clima de festas de fim de
ano estava no ar há muito tempo. Eu já morava só e por isso estar desempregado
me preocupava, além da ideia de passar o fim de ano sem dinheiro para poder
sair e comemorar aquela virada de ano que, apesar da situação em que me
encontrava, tinha sido muito bom para mim. Na época eu estava sem estudar
(terminei em 2003 meu ensino médio, aliás, foi nesse período que conheci o
Amarildo, e desde então apenas me dedicava a trabalhar para poder sustentar-me,
já que havia decidido morar só), mas sempre gostei de ler e, modéstia a parte,
sempre fui muito inteligente, embora hoje leia bem mais e me considere com
maior perspicácia e sabedoria do que antes. Enfim, o fato é que eu estava
desesperado para conseguir um emprego que pudesse fazer com que eu me
sustentasse e sustentasse meus vícios: o álcool, que ainda consumo, e a maconha,
que já não uso mais, embora seja a favor da legalização.
Como
não tinha qualificação na época e meus empregos passados, salvo as aulas de
reforço que eu dava em química, física e matemática e que me garantiam algumas
garrafas de rum ou vodka e alguns fininhos de erva nos fins de semana, tinham
sido todos em nível operacional (chegando a ser braçal em alguns casos), eu
colocava meu paupérrimo currículo em tudo que eu via nos classificados:
ajudante de pedreiro, office boy, garçom, enxugador de gelo, limpador de carvão, etc. Meus pais sabiam
que eu estava no maior perrengue, e por isso meu pai passou em casa para me
levar ao shopping para comprar alguma
roupa para passar o fim de ano, quando o Karl, vizinho que me deixava colocar seu
número de telefone nos currículos para receber recados, já que eu não tinha
telefone em casa, chegou dizendo que haviam ligado do Supermercado Hell e que era para eu estar lá às 16h (era
13h30min do dia 16 de dezembro, um sábado).
Tive
que dispensar o papai e me dirigi correndo ao Supermercado Hell para falar com o gerente, um senhor branco, com
orelhas de abano e o rosto largo, como se tivesse com os dentes inchados,
chamado Adolf. Adolf me informou que o supermercado estava precisando de
pessoas para trabalhar como embalador durante aquelas duas últimas semanas de
dezembro para poder atender a demanda, porém não se comprometia a assinar a
carteira de trabalho e nem a redigir nenhum tipo de contrato por trabalho
temporário, sendo que eu receberia proporcionalmente aos dias trabalhados com
base no salário mínimo da época (R$350,00) e mais R$30,00 por cada domingo trabalhado,
tendo que cumprir uma jornada de trabalho que iria das 8h00 até as 18h00 em dias
de semana (com 1h de intervalo para o almoço), das 8h00 até 12h00 aos sábados e
de 8h00 as 14h00 aos domingos, mas na prática era obrigado a ficar até por
volta das 22h00 ou 22h30 de segunda a sábado e até as 16h00 nos domingos.
Embalador
é aquele carinha que coloca suas compras na sacola e as leva até o seu carro, e
você fica puto porque ele não coloca bem arrumadinho as coisas no saco, porque,
além de ele estar muito cansado com sua jornada de trabalho, tem um filho da
puta gerente que fica apressando ele toda hora e dizendo que é para
economizar nas sacolas, pois nem em toda a vida ele vai conseguir ganhar o
dinheiro que o supermercado gasta por mês comprando sacolas plásticas. Eu
aceitei o trabalho!
A
primeira semana foi tranquila: chegava em casa quase meia-noite, tomava banho,
comia algo, tomava uma dose de conhaque para aquecer a alma, fumava unzinho
ouvindo um reggae,
ligava para a namorada (às vezes batia uma... saudade!) e ia dormir quase 3h00
da matina para poder estar em pé as 7h00 (eu tinha o privilégio de morar perto
do inferno trabalho). Mas, na segunda semana as coisas pioraram a ponto de eu sair escondido uma hora
antes do meu horário habitual e ligar para a mamãe de um orelhão (quando ainda existiam aqui na Mangueirosa) e, aos
prantos, dizer que não aguentava mais. Porém, mamãe me encorajou a ficar, então, como bom menino que sou, fiquei.
No
fim dessa segunda semana, veio o que o Tragtenberg, que conheci nas conversas
com o Amarildo por essas noites de boêmia, chama de “narcótico do grande
demiurgo”: o pagamento pelos dias de trabalho, uma “gratificação” no valor de
R$50,00 e uma cesta básica que tinha um vinho tão ruim que eu usei como vinagre
para temperar o frango que o acompanhava. Fiquei feliz, afinal ia ter com que
beber e fumar no fim de ano: “as coisas estavam melhorando pra mim”, pensei sem
usar a razão (se é que isso é possível).
Entra
janeiro olhando ao mesmo tempo para o ano que se foi e para o ano que vem e as
coisas melhoraram um pouquinho: saiu a lista de quem iria ser contratado e de
quem iria ser dispensado e o meu nome estava entre os que ficariam. Está assim
na minha carteira de trabalho:
Data
de admissão: 2 de janeiro de 2007
Não
vou negar que fiquei feliz ao ver a assinatura do empregador naquela azulzinha,
e ainda fico, afinal, foi uma experiência que me ajudou a engrandecer conhecimentos e saber que a vida não é mole, mas que também basta ter coragem
para poder levá-la sem grandes prejuízos. Enfim, dia 2 de janeiro de 2007
começou minha vida de funcionário do Supermercado Hell. Fui conhecendo as pessoas e vi que muitas
delas estavam ali pelo o mesmo motivo que eu, embora as origens desse motivo
fossem diferentes: precisavam de qualquer forma trabalhar! E eu fui
desenvolvendo minhas atividades com tanta expertise, afinal ser embalador não é para qualquer um, pois se exige um grau de
especialização muito alto e eu o alcancei mesmo dispensando o MBA oferecido na
área pela universidade corporativa da empresa.
Enfim,
meu trabalho foi reconhecido e o fato do repositor da seção de bebidas ter sido
demitido por ter faltado inúmeras vezes e não ter ninguém para substituí-lo não
foi o fator chave para minha promoção para aquele cargo, que ocorreu no mês de
abril de 2007, mas foi registrada somente no mês de julho. Bem, estava a menos
de seis meses na empresa e já tinha sido promovido: sonhei com a gerência,
tinha um futuro promissor pela frente.
Ora,
não era tão ruim trabalhar naquela empresa e ali eu me sentia como se estivesse
com uma grande família, afinal trabalhávamos e nos víamos no mínimo 12 horas
por dia e tínhamos as roupas em estados parecidos, algumas muito, outras mais
ainda, mas todas rotas. Bem, em junho de 2007 meu salário já havia passado de
R$350,00 para R$440,00, e com acréscimo de horas extras, que eram pagas sem registro em
folha salarial, dos R$ 90,00 pagos pelos três domingos trabalhados em cada mês,
lembrando que, em média, um mês tem quatro domingos. Somando tudo, recebia
quase R$900,00 por mês e, como não tinha tempo para sair e gastá-lo, investia
em doses de conhaque, vodka ou rum e algumas cervejas e cigarros no bar que
ficava ao lado do supermercado.
Já
disse que éramos uma família e, por isso, meus colegas de trabalho me
acompanhavam no bar: essa era nossa única diversão até então. Até então porque
depois descobri que, como o já citado Tragtenberg diz na obra que inspirou esse
texto, a ação da empresa exploradora “manipula os indivíduos, infantilizando-os
e pervertendo-os pelo álcool, fumo, por monopólios do Estado, pela publicidade,
pornografia, baixo nível da cultura de massa”. Descobri que, da mesma forma que
eu fugia do stress
daquele trabalho com o álcool e alguns papelotes de maconha, a maioria de meus
colegas de trabalho utilizava esses mesmos recursos e outros ainda mais
sedutores: cocaína e prostitutas, por exemplo. Constatei que no fim da nossa rua tinha areia branca e, com esse elevado índice de alcoolismo e
drogadição, o resultado não poderia ser outro: passei a beber mais, conheci a
dama de branco e uma, não mais que isso, dama da casa da luz vermelha.
O
leitor desavisado ou preconceituoso, ou desavisado e preconceituoso, que é o tipo que mais encontro em minhas andanças, pode pensar
“esse R.S.R. é um pervertido, maconheiro, drogado e agora vem falar mal dessa
empresa, e não sei o que, e blá, blá, blá...”. Bem, se você pensa ou pensou
assim, pare por um minuto e reflita sobre tudo que até agora falei. Se mudar de
ideia, pode continuar lendo à vontade, caso contrário, vai tomar no cu
jogar Colheita Feliz no Orkut (me falaram que isso já tá demodê, que agora tem um tal de feicibuqui que é bem melhor. Talvez eu pare pra apreciá-lo qualquer dia desses) e me deixa em paz!
Sei
que fui fraco em me envolver com essas coisas, do mesmo jeito que as outras
quinze pessoas (sei que ainda tem mais, porém agora só consegui lembrar e
contar quinze) que encontrei em situação parecida, mas nós tínhamos que achar
uma válvula de escape para uma situação em que trabalhávamos pelo menos 12h por
dia em dias normais, e, quando havia balanço ou limpeza da loja, ficávamos até as 6h00 da
manhã do outro dia acordados e a empresa fornecia um lanche “reforçado” de pão com queijo, presunto e refrigerante, sendo que tínhamos que
estar de volta ao trabalho às 16h desse dia em que amanhecíamos trabalhando.
Fora isso, acho que poderíamos agir com maior resiliência (R.S.R. explica:
resiliência é um termo originário da física e representa a capacidade que
alguns materiais possuem de voltarem ao seu estado original após sofrerem
alguma deformação causada por agente externo. Aplicado a pessoas, o termo
expressa capacidade de lidar com situações adversas e de elevado stress
sem sofrer mudanças negativas no
comportamento) em algumas situações que éramos submetidos, como:
- Subir
nas empilhadeiras para pegar mercadorias sem usar Equipamento de Proteção
Individual (EPI);
-
Ter
que puxar, num percurso com cerca de 300 m entre o depósito e a loja, em média
quatro carros por dia carregados de mercadorias com peso médio de 400 Kg cada
carro;
-
Beber
água enchida diretamente da torneira e sem tratamento, o que, inclusive,
ocasionou hepatite A em mim e outros dois colegas de trabalho;
-
Pegar
esporros e ser humilhado em público por atrasos ou outros motivos injustificáveis
(o caso do Adolf ter falado que não poderíamos ganhar o tanto de dinheiro que o
supermercado gastava com sacola por mês nem se trabalhássemos a vida toda
relatado no início desse texto foi verídico);
- Ter
somente duas folgas por mês (isso quando se tinha folga, pois nos meus últimos
seis meses de trabalho, tive apenas 3 folgas);
-
Ser
punido ou advertido por se recusar a fazer hora extra; e
-
Atrasos
nos pagamentos, com privilégios para algumas pessoas receberem antes que o
restante, além da hora extra que, como falei antes, era paga sem registro na
folha salarial e vinha, frequentemente, incompatível com o que a pessoa
realmente trabalhou (daí a punição levantada no item acima).
Com
tudo isso, eu me via sem perspectiva, embora soubesse de minha capacidade
intelectual, que estava apenas dormindo e narcotizada por essa violência doce
que o capitalismo utiliza, pois, mesmo assim, eu ainda gostava de trabalhar
naquela empresa, seja porque era pregado que não teríamos outra escolha, seja
porque foi a primeira vez que me senti dentro de uma família num ambiente de
trabalho, pois meus amigos dali me respeitavam e eu os respeitava. Mas, eu não
podia continuar daquele jeito, e foi então que o repositor que tinha um salário
de R$480,00 quando passou a ser auxiliar direto de seu gerente, o senhor
Engels, que tinha a capacidade de unir aquele grupo como um patriarca reúne a
família, e que lia, enquanto puxava aquele carro com quase meia tonelada de
mercadorias, as apostilas que sua namorada trazia do cursinho que fazia,
conseguiu passar em Psicologia no vestibular 2008 da UFPa e, embora tenha
aguentado ainda por um tempo aquela situação, teve, por meio dos conhecimentos
e das amizades que fez na academia, seus olhos abertos para tudo aquilo, e
conseguiu a coragem necessária para realizar sua transformação.
Primeiro,
deixou a cocaína e a maconha. Depois, reduziu seu consumo de álcool (até hoje
ainda bebo muito, embora tenha reduzido um pouco, e sinto muito prazer nisso. Digamos que eu seja cervejetariano).
Por último, decidiu entregar seu lugar, pedindo demissão no dia 10 de outubro
de 2008. Hoje, esse futuro psicólogo não se arrepende do que fez, seja ter
entrado para o quadro de funcionários do Supermercado Hell, seja ter pedido demissão, e pode lhes
dizer uma coisa: a educação é o melhor meio de transformação social e por ela
podemos não apenas nos libertar, mas construir essa revolução que a televisão
não poderá transmitir. The revolution will not be televised!
R.S.R.