Considero o ato de ler uma de minhas
necessidades atávicas, ademais de ser também um prazer espontâneo,
exercido não importa o lugar ou o horário. Por conta disso, tenho sempre
buscado enriquecer meus escritos acadêmicos com aquilo que a literatura me
proporciona. E me é prazeroso perceber que posso entender o conceito bourdiesiano de habitus ou refletir sobre paisagem por meio de Guimarães Rosa;
constatar o sufoco labiríntico que a burocracia nos impõe através de uma
leitura de Kafka; enxergar a ideia de incesto que Marcel Mauss nos legou ou uma
complexa narrativa sobre a dominação masculina em García Márquez; ou
discutir alteridade por meio de William Ospina, dentre tantas outras
possibilidades. E a contribuição literária não se restringe a um patamar
meramente ilustrativo, podendo contribuir para a própria definição da abordagem
que direcionará um estudo. Neste caso, Borges e Allan Poe, para ficar somente
nesses dois exemplos, têm muito a nos ensinar sobre rigor metodológico,
arbitrariedade em análises e classificações, e sobre técnicas de coleta de
dados.
No entanto, e em especial em
determinadas áreas de estudo, o recurso à literatura é desdenhado. Importo-me
com isso, mas não deixo-o definir minha relação acadêmica com a literatura, e
por isso não reconheço nada além de litania em tal tipo de desdém. Dito de
outro forma, desdenho desse desdém e confio que ser leitor, no sentido pleno
da palavra, faz parte do processo de formação e suscita profundidade reflexiva.
Por cultivar esta crença, estabeleci
uma sorte de conduta permanente que consiste em indicar logo na primeira
reunião que estabeleço com um(a) orientado(a) pelo menos um texto literário,
mesmo que curto, sendo normalmente os de Borges, e o breve artigo que
compartilho abaixo com vocês, de Maurício Tragtenberg (1929-1998), um dos
autores mais queridos desta casa, e que trata justamente sobre a importância da
literatura para homens e mulheres de cultura universitária. Aproveitem-no, e
sigam lendo! ;)
***
A importância da literatura para o
homem de cultura universitária, qualquer que seja sua especialização*, por MaurícioTragtenberg
(licenciado em História pela
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo - USP)
*Trabalho premiado – prêmio
Graciliano Ramos – no concurso de literatura
para os universitários do país,
instituído pelo Ministério de Educação e Cultura e pela revista O Cruzeiro,
conforme sua publicação de 2-1-60.
A mensagem literária dirige-se hoje
para um homem que vive numa época de especialização, que exige o culto às
ciências naturais como o único digno de si. Partindo dessa premissa, uma
evidência nos aponta: encontramos médicos, engenheiros e advogados, mas não o
“homem” inserido nessas profissões. Essa especialização diferencia-os do resto
da humanidade. Submergidos em suas atividades estes não têm oportunidade para
serem no meio dos homens, “iguais entre iguais”.
A especialização é o signo de nossa
época. O gigantesco desenvolvimento do conhecimento nas ciências naturais, a
centralização de esforços dos Institutos Universitários em torno das pesquisas
físicas longe de prescindirem de um sentido humano à sua atividade, colocam-no
com mais dramaticidade.
É o espantoso desenvolvimento das
ciências naturais que revela o fato do homem achar-se num período de transição.
Os velhos valores fenecem e os novos não foram ainda encontrados. Esse vácuo é
preenchido pela incerteza do homem quanto ao seu destino [1].
Numa época de especialização [2], a
literatura define os ideais de um período de crise e transição. Daí toda grande
obra literária ser de um período de transição (veja-se a importância da
mensagem de Dante, Dostoievski ou Kafka).
Pois é nesses períodos que se põe
dramaticamente ao homem essa interrogação: qual o sentido de sua vida, qual a
significação do mundo que o cerca?
O médico, engenheiro, advogado,
encarnam especializações necessárias ao exercício de suas atividades, mas têm
em comum, um atributo, o de serem humanos e o de enfrentarem idênticos
problemas numa sociedade em transição.
Somos filhos de uma sociedade
individualista e liberal e caminhamos para um outro tipo de sociedade
planificada. Como dar-se-á tal mudança? Quais os agentes desse processo? Não o
sabemos. O que sabemos é que assistimos a um espetáculo de crise, de transição,
onde os velhos quadros sociais desaparecem e os novos ainda não se
estruturaram.
A literatura é uma forma de resposta a
essa interrogação. Ela, pelos escritos de Homero, transmitia-nos uma mensagem
corporificando um tipo de homem: o cavaleiro e o nobre; pela pena de Hesíodo,
transmitia-nos uma ética do trabalho e sua dignificação como sentido da vida
[3]. Os escritos de Joyce, Kafka e Faulkner, constituem uma mensagem adequada
aos tempos novos: as formas clássicas do romance estão fenecendo; cabe ao homem
descobrir uma nova linguagem para exprimir novas experiências de uma nova vida
[4].
De todas as formas de arte a
literatura é a mais próxima da vida e a mais sintética, pois reúne a
arquitetura, quando no processo de composição do romance, a música, na
estrutura melódica da frase, a pintura, no traçar o caráter dos personagens, a
filosofia, ao definir seus ideais de vida. Daí sua importância para a cultura.
Sendo ela acessível aos diferentes
especialistas, poderá formular novas formas de ação ética e padrões morais.
Como um sismógrafo poderá ela captar o sentido interno da mudança que se opera
no mundo. Para tal, conta com a intuição artística, que faz com que as mudanças
sejam pressentidas antes pelos seus possuidores, passando depois aos campos
sistemáticos do conhecimento.
A transição do século XIX e XX foi
assinalada, em primeiro lugar, pelos impressionistas, pelo naturalismo
literário e posteriormente pelos teóricos de política, economia e filosofia.
A literatura pertencendo a um dos
campos assistemáticos do conhecimento tem esse poder. Pode auscultar as
mudanças que se operam no mundo e pela imaginação de seus grandes nomes,
definir ao homem comum, novos caminhos.
Se não conseguir formulá-los com
nitidez, pelo menos servirá como testemunho de uma época. A época que produz
Camus, Kafka e Faulkner [5], já escolheu seu destino: eles testemunham por ela.
Na época moderna à literatura cabe um
papel integrador. O papel de superar o abismo existente entre a arte e a vida,
arte e ciência, na medida em que ela mesma é concebida como uma forma de conhecimento
dessa totalidade, que é o homem.
Cabe ao escritor viver plenamente sua
época, pois só atinge a grandeza, aquele que sentiu seu próprio tempo. Este é o
segredo da universalidade de um Goethe, Balzac ou Cervantes.
Nessa tentativa de traçar com lucidez
os quadros do mundo, onde se desenrola o drama humano, num período de
transição, é que a literatura deixará de ser o “sorriso da sociedade”, para ser
testemunho de uma época, uma mensagem acessível a todos, que permitia ao homem
independente de sua especialidade sentir-se junto ao seu semelhante, como
“igual entre iguais”, cumprindo um sábio preceito chinês.
Se as profissões diferenciam o homem,
cabe à arte uni-lo em torno de ideais comuns. Isso ela pode fazê-lo, pois sua
linguagem é universal e a condição humana idêntica em toda a face da terra.
NOTAS:
--------------------------------------------------------------------------------
[1] - A respeito da incerteza do homem
quanto ao seu destino individual, num mundo em mudança, existe uma vasta
bibliografia, cujos pontos de vista mais relevantes aparecem expostos em:
S.
Freud – Civilisation and its discontents. Londres,
1930.
J. Ortega y Gasset – La rebelión de las
massas. Madri, 1930.
Huizinga – Entre las sombras Del
mañana. Madri, 1936.
Niebuhr
– Moral and imoral society. A study in ethics and politics. Nova York, 1932.
Os trabalhos acima estão pautados por
uma visão romântica e pessimista ante os problemas da técnica numa sociedade de
massas e suas repercussões morais, políticas e econômicas.
Uma posição mais construtiva e
realista em relação aos mesmos fenômenos se encontrará em:
Karl Mannheim – Libertad y
Planificacion Social. México, 1946.
Karen
Horney – The neurotic personality of our time. Londres, 1937.
Erich Fromm – Psicanálise da sociedade
contemporânea. São Paulo, 1959.
[2] - A respeito da tendência
irrecorrível de nossa civilização à especialização, veja-se Gerth e Mills –
“From Max Weber”, cap. Science as vocation. Londres, 1955.
[3] - Sobre a importância da
literatura como “formação do homem” em Homero e Hesíodo, veja-se, Werner Jaeger
– Paidéia – I Volume,\ págs. 53-93. México, 1955.
[4] - O “tipo ideal” de romance
construído arquitetonicamente é o de Balzac. “La Commedie Humaine”
representa o ideal linear do romance do século XIX. Com “Lês Faux Monnayeurs”
de A. Gide, este esquema de desenvolvimento linear da ação do romance deixa
lugar à simultaneidade das ações. Esta ruptura com a construção tradicional de
romance é salientada por Claude Edmonde-Magny quando escreve: “en écrivant “Les
Faux Monnayeurs”, ce modèle de “sur-roman”, Gide refuse la conception
traditionelle du genre, avec une vigueur, à peine moins grande, que celle de
son ami Paul Ambroise” in “Histoire du roman français depuis de 1918, pág. 229.” Paris, 1950. Joyce
representa uma nova experiência construtiva utilizando um tema clássico.
Diferentemente dos modernos, é introspectivo. O monólogo interior é a razão de
Dédalo, é uma forma de existência. Joyce lançou essa técnica já descoberta
anteriormente por um francês, Edouard Dejardin. Antes de Joyce, já o inglês
Stephen Hudson dele já fazia uso. Até o nosso semiconhecido Adelino Magalhães
já o usava.
[5] - Em Faulkner o diálogo não é uma
relação entre duas consciências, é uma relação com vistas à ação. Ele não
exclui inteiramente o monólogo, como por exemplo em “Tandis que j’agonise”.
Nota Claude Edmonde Magny, que “chez Faulkner l’analyse intérieure alterne
perpetuellement avec l’énoncé des comportements” in L’Age du roman americain,
pág. 50. Paris, 1948. No entanto, sua obra, como a de Hemingway, Dos Passos e
Caudwel estrutura-se sob modelos behaivoristas inspirados na técnica do cinema
norte-americano. A respeito das influências do cinema no romance americano e
francês após-guerra, veja-se as pertinentes observações de Magny, ob. cit.,
pág. 11.