terça-feira, 7 de outubro de 2014

O povo realmente é burro?




Cartum d0 Henfil (retirado do livro "Henfil nas eleições")

Madrugada de terça-feira e resolvi escrever sobre um incômodo que me importuna cada vez mais desde os resultados do primeiro turno das Eleições 2014. É algo ao qual estou sensível nos últimos dias, embora já o tenha reproduzido no passado: o discurso de que o povo seria burro, por isso o resultado dessas nossas eleições. É lógico que não estou contente com o que saiu das urnas, as quais definiram um aumento da quantidade de legisladores (nos níveis estaduais e federais) que podem ser "qualificados" sem receio como conservadores, alguns inclusive de reacionários. Mas daí pra repetir com soberba que "nego é burro, burro, e continua votando errado" há muita coisa a ser considerada

Vejamos o Pará, por exemplo, que elegeu para a Alepa um coronel da polícia militar, e cujo deputado federal mais votado (e de maneira expressiva) foi Éder Mauro, delegado. Expressão clara de que os eleitores estamos preocupados com a escalada da violência e insatisfeitos com as políticas públicas de segurança. Porém, eleger Éder Mauro não é continuar investindo numa política de segurança que não vem dando certo, pois a reduz à repressão e ao uso da força? Elegê-lo também não é reforçar a crença de uma violência ubíqua, mesmo sabendo-se que a violência não se distribui de forma igualitária no espaço urbano, variando em sua intensidade e qualidade dependendo do lugar onde se está e de quem ali está? Reforçando-se essa ideia só se contribui para aumentar a anemia do espaço público, encolhendo-o, deteriorando-o e restringindo-o nas cidades contemporâneas como bem mostra Marcelo Lopes de Souza em seu livro Fobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Essa contribuição que o Pará dá para a chamada bancada da bala será sentida nos rumos que serão dados a questões tão importantes, como a redução da maioridade penal; a descriminalização do consumo de entorpecentes e a legalização e regulamentação de sua compra e venda; a desmilitarização das polícias; a descriminalização e legalização do aborto; e a regulamentação do porte de arma, por exemplo. Claro me parece que essa maneira de tratar segurança pública somente cria impunidades seletivas  e, retomando novamente Souza, reduz a mobilidade intraurbana geral, criando e reforçando exclusões e autoexclusões. Foi o que Marcelo Yuka nos disse anos atrás sobre a dúvida que as grades dos condomínios trazem consigo, e reforçou recentemente quando disse que, junto a seu irmão, passou a temer a cidade toda vez que se fala em proteção.

Para finalizar o tema segurança pública, costumo dizer que não acredito na violência, o que pode parecer estranho com tantas notícias que nos chegam pelos mais diversos veículos da mídia, pela conversa com conhecidos ou desconhecidos, e muitas vezes também pelo revólver que nos interpela aqui e acolá, mas que nem sempre vem despido de uniforme, afinal, ainda é frequente a ocorrência de fatos que nos fazem crer que o diabo veste farda, como li num muro na esquina da Avertano Rocha com a 16 de Novembro. Mas, contraditório, não acredito nela sabendo de sua existência e convicto de que a melhor forma de combatê-la não é rendendo-lhe tributo ou depositando-lhe minha fé e meu medo. E essa a-crença, minha alétheia particular, me tem sido útil até então, pois aprendi desde cedo a não temer as ruas e acredito que quem teme as ruas não soube amá-la nem respeitá-la como fonte de sabedoria que é.

No entanto, voltemos ao tema que o título desse texto suscita. Creio que disse que estava descontente com os resultados da eleição, mas deveria ter dito que estou descontente com essa eleição, independente de seus resultados, pois mais uma vez fomos impelidos à busca do candidato menos pior para depositarmos nosso voto e a ilusão que ele carrega nesse nosso sistema de democracia representativa (Maurício Tragtenberg apresenta muito bem isso em artigo de 1982 que tomo a liberdade de não pedir licença para reproduzir aqui um trecho que, quase em tom profético, fala muito sobre o PT de hoje: "O Partido dos Trabalhadores que inicialmente constituiu esperança de valorização da auto-organização dos mesmos, ao eleger o caminho eleitoral tende a formar, em cada trabalhador vereador, deputado ou senador, um ex-trabalhador.// Se não definir com clareza seu objetivo em termos de mudança estrutural, poderá ser cooptado pelo regime transformando-se em seu 'braço esquerdo'").

Mas, somente começaram a se delinear os resultados desse primeiro turno e as redes sociais ficaram alvoroçadas como é de seu feitio, repetindo como papagaios recalcados que o povo é burro e sem memória; que o gigante acordou, bebeu água, pegou vinte centavos e dormiu; que protestamos como nunca, mas votamos como sempre; que necessitamos de vestibular político; que não adianta mais protestar depois desses resultados; e uma série de impropérios. Impropérios contra O povo, como se a culpa residisse nos outros, nas terceiras pessoas do singular e do plural, estas sendo, portanto, o povo. Ledo engano, afinal, quando se trata de política, essa ação impura e forma moderna da tragédia, não existe inocentes; no máximo, inocentados. Será que aí não está implícito um preconceito medioclassista/elitista com o popular? Tenho fortes razões para crer que sim.
E é triste ver que isso é um pensamento e um argumento reproduzido muitas vezes sem se debruçar minimamente sobre ele. Estendo a ele a mesma reflexão que fiz no texto (Foi pra rua? Vem pra urna!)?!: a de que sua reprodução pode contribuir para o desvanecimento da participação política tão importante para o impulsionamento de mudanças estruturais que nos são necessárias, com as quais nos será permitido ver uma possibilidade de não mais engolir o pior ou, quando muito, o menos pior.
O povo não é burro, talvez só esteja perdido em meio à pobreza extrema que ainda atinge cerca de 16 milhões de brasileiros; à educação em más condições físicas e qualitativas; ao pouco acesso à informação de qualidade, apesar da internet, que mesmo assim só consegue alcançar um pouco mais da metade do total da população; às condições resultantes do sistema eleitoral, que privilegia candidatos cujos bons recursos econômico-financeiros não harmonizam com seus conceitos políticos e que estimula alianças espúrias; dentre tantos outros fatores que, redutores da equidade, impossibilitam um cenário de escolha ótima.
Vejamos a Lei da Ficha Limpa, que torna inelegível candidatos que foram condenados por decisão de órgão colegiado, mesmo com possibilidade de recurso, que tiveram mandato cassado ou que renunciaram para evitar cassação. A lei é um avanço, mas incorre no depósito de confiança no seu cumprimento pleno e na realização "justa" da Justiça. Como crer cegamente nela quando há no país uma impunidade seletiva? Assim, a Lei é somente um mecanismo a ser considerado, pois o fato de ser "ficha limpa", isto é, de não ter sido tornado inelegível nos termos dessa lei, não é comprovante de idoneidade, como muitos políticos querem que acreditemos e acabam por utilizar essa própria lei para seu arsenal de marketing. Tais políticos que se orgulham de serem "ficha limpa", utilizando o termo quase como um título de nobreza inarredável do seu nome, devem entender, e nós eleitores principalmente, que ser "ficha limpa" é o mínimo necessário, sem o qual não há sequer possibilidade de candidatura, não sendo diferencial nenhum e, portanto, não deveria ser motivo de orgulho e tampouco de elemento de diferenciação na hora de escolher em quem votar. Orgulhar-se de ser "ficha limpa" é como dizer-se bom cidadão por pagar seus impostos. É orgulhar-se daquilo que é a lei o obriga a ser. E ainda assim nós eleitores somos tocados por esse discurso. Há burrice nisso? Não, o que há é pouca criticidade, e isto sim é arma de grosso calibre apontada para própria testa.
Para finalizar com uma reflexão que talvez fuja um pouco da proposta deste texto, quero expressar minha preocupação com algo nessa eleição: o despontar de um importante ator político, Jefferson Lima. Já falei sobre a demagogia a la Wlad deste que foi o segundo candidato mais votado para o cargo de senador no Pará - o qual, ouvi dizer por aí, a cada voto recebido caia uma lágrima da urna eletrônica (referência a uma propaganda em que o candidato aparece chorando tal qual crocodilo para convencer os eleitores a votarem nele).
Me preocupa sua ascensão como político que pode decidir, e sempre para o que considero como pior para nós, os resultados finais de uma eleição. Jefferson, por exemplo, ficou à frente nessas eleições de Mário Couto, tão péssimo político quanto ele, tendo 741.427 votos, ou 29,92% dos votos (ainda assim, 24,28 pontos percentuais a menos que o candidato eleito, Paulo Rocha, do PT, que, como quase todo o seu partido, sofre do que o trecho do artigo de Tragtenberg citado mais acima expressa). Nas eleições para prefeito de Belém, a qual se candidatou, Jefferson Lima obteve 99.714 votos, ou 12, 89%, ficando em terceiro lugar e tendo contribuído consideravelmente para a vitória do tucano Zenaldo Coutinho, também conhecido como Zenálcool ou Zenaldudu Coutinho Costa (belenenses entenderão).
Jefferson Lima é ganancioso, e vem tendo provas do poder político que tem, o que pode gerar péssimas surpresas para nós já nas próximas eleições municipais. E, mais do que isso, como me disse Larissa Guimarães quando lhe expressei essa minha preocupação, seu estrago certamente não se restringe aos cargos eletivos, pois a força que adquire para barganhar posições para si ou para os seus na formação do próximo governo também são preocupantes. Ao que parece, engendrou-se um político fisiológico no Pará.

Eis a tragédia. Desfrute-a (ou não).

Com farinha e sem açúcar,

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