quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Quis custodiest ipsos custodes?

Atualizado em 7 novembro de 2014.

Belém sangra, e os matadores não percebem que atiram no próprio espelho.
Belém chora, e ainda há quem peça mais mortes, pois para esses "bandido bom é bandido morto, e quem sentir pena, adota". Esquecem que, como disse Sérgio Vaz, a chacina é uma viagem que te leva mesmo você não tendo passagem. Para estes "meritocratas", existe uma régua com a qual se mede quem é melhor e quem é pior, e tudo bem se quem a utiliza é o mesmo que empunha a macaca ou dirige o camburão, que de Norte a Sul sempre tem um pouco de navio negreiro. Sendo assim, quem vigiará os vigilantes?
Já falei uma vez que não acredito na violência, afinal, o medo dá origem ao mal, como dizia Chico Science. Me recuso, portanto, a depositar minha crença na violência enquanto meio para se alcançar o fim da própria violência, e também me recuso a prescindir de minha liberdade em andar pelas ruas, mães de toda Sabedoria, por medo de uma polícia que decide quem vive e quem morre a seu bel-prazer, aplaudida de pé por quem defende a permanência desse Circo dos Horrores, dessa Fantástica Fábrica de Cadáveres. Devemos nos contentar em lavar copos e contar corpos?
As pessoas são importantes, é por meio delas que os valores são criados. Esse tipo de polícia, que se coloca acima da lei, do bem e do mal, é?

Eis a tragédia. Não a desfrute.

Com farinha e sem açúcar,

Açaí ou Barbárie

P.S.

Segundo dados da Anistia Internacional, só no ano de 2012, 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30 mil são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. É esse o perfil das vítimas de ações de extermínio como as que ocorreram em Belém na noite de terça e na madrugada de quarta-feira: jovens, negrxs/caboclxs, pobres, que vivem na periferia.
São pessoas vitimadas tanto por problemas socioeconômicos estruturais, quanto pela violência, esta mesma originária da maioria desses problemas socioeconômicos que se perpetua quando o Estado está presente quase sempre somente com sua fachada perversa. São pessoas vitimadas, portanto, por violências simbólicas e concretas, sejam estas praticadas pelos criminosos presentes nessas áreas de periferia, que são oprimidos que oprimem outros oprimidos; seja praticadas por agentes públicos, estes também oprimidos que oprimem outros oprimidos e, o que se torna agravante, investidos de prebendas burocráticas que se por um lado os transforma em representantes do Estado no momento do exercício de suas atividades, por outro lado não lhes permite que utilizem-se da própria posição que ocupam para extravasar um tipo de poder que, para o próprio bem da sociedade em geral, sem essa distinção hipócrita e moralista que define com base em preceitos sociocentristas quem é e quem não é cidadão de bem, não deveria lhes ser outorgado.
Infelizmente, ações como essas que ocorreram em Belém, que fogem da legalidade e são prenhes de uma discrição corrompida, demonstram que seus realizadores estão revestidos de uma crença de que estão acima da lei, do bem e do mal, e que por isso podem ser os julgadores e executores de um tipo de sentença, que se constitui em sentença de morte, um tipo de sentença que se não tem existência legal no Brasil, acaba por existir de forma "real", basta olhar um pouco mais com acuidade para a realidade das nossas periferias. Mais infelicidade é ver que tais ações ganham ecos de defesa por parte da população, o que se expressa nos embustes de que "bandido bom é bandido morto", "direitos humanos para humanos direitos", etc, quase sempre seguidas da expressão "e quem acha ruim, adota, leva pra casa, etc." ou dos impropérios de "defensor de bandido", "protetor de vagabundo", "quem defende bandido é porque tá se beneficiando de alguma forma", etc. Ou seja, o discurso de quem defende esses tipos de ação como sendo a panaceia para o problema da violência é, ao repetir tais frases como papagaios recalcados, medíocre e acrítico, para ficarmos somente nesses dois adjetivos.
O resultado vocês podem ver no número de pessoas mortas e no medo instalado que esvazia espaços públicos e contribui para aumentar a sensação de insegurança. E, infelizmente, todos nós somos culpados por isso. Esse sangue tá na mão de cada um de nós: de quem pede a redução da maioridade penal achando que ela vai acabar com a violência quando somente vai vitimizar quem é já é vitimizado há anos nesse país, as crianças; de quem pede que mais e mais bandidos sejam mortos e ignora que se o problema da violência não for tratado de uma outra forma "se eu morrer, nasce outro, igual ou pior ou melhor" e mais e mais sangue irá cair sobre a terra, vindo de todos os lugares; e de quem se cala diante disso, seja por medo, seja por comodidade.
Nessa tragédia, não existe inocentes; no máximo, inocentados.

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