quinta-feira, 3 de julho de 2014

A apologia de Sócrates



Ganhar ou perder, mas sempre com Democracia”
(lema da Democracia Corinthiana)




A confirmação do título chegara antes do apito final. Pelo rádio e pelo telefone. Pelo abraço entre desconhecidos que compartilham um mesmo amor. Pelo toque da mulher grávida sobre seu próprio ventre. No entanto, aquele era um título que se conhecia de antes, cuja conquista havia sido executada horas anteriores ao primeiro apito, na madrugada daquele mesmo domingo e em um leito de hospital. Lá, um atleta que conseguira levar elegância e liberdade ao futebol deixara a prova de que nem sempre o verdadeiro rosto é o último.
A taça também fora levantada antes do início daquela nervosa rodada, no exato momento em que jogadores e torcedores ergueram os braços, punhos cerrados, no centro do gramado, na arquibancada ou em frente a uma televisão – gesto duro, mas que não declina da ternura e contribui para aumentar a tenaz vantagem da vida sobre a morte. A celebração de um homem especial.
Longe do estádio e daquela missa de extrema unção, em frente a um desses bares pés-sujos cujo dono é irresistivelmente mal-humorado, um garoto, Carlos, calção e camiseta rota, que mirava a transmissão da partida do meio da rua, decidira-se platonicamente ser tal qual o homem que imortalizara aquele gesto nos gramados. E um luto de alegria também decidira sair às ruas. Bêbado, barulhento, jocoso. Sofredor como um bando de loucos.
Carlos observara aquilo e mudava ali talvez não sua vida, ainda pequena para um mundo tão grande, mas pela primeira vez percebera a realidade dos que vivem convictos nos conceitos que sempre tiveram e que sempre expressaram. Dos que, por se ocuparem de coisas diversas daquelas que ocupam seus pares, ganham fama, calúnias e acusações. Eis uma beleza triste, contraditória e solitária.
Carlos então decide caminhar em direção à sua casa, exortando com o olhar todos a terem cuidado para não serem por ele, hábil no caminhar e em ler o movimento dos corpos, enganados. Também começa a especular as coisas celestes – folhas-secas, bicicletas, lençóis, dribles da vaca – e investigar as subterrâneas – a organização da Copa do Mundo, os xingamentos ao juiz, o grito de gol, a entrevista concedida pelo técnico da Canarinho, o grito racista que ainda vem das arquibancadas –, e decide tornar mais forte a razão mais débil. Assim como mudam os mundos, algo mais mudava.
Havia uma bola de meia no meio da rua. No meio da rua – da rua de terra batida onde vive – havia uma bola de meia. E dois, três garotos. E uma, duas traves feitas de pedaços de madeira fincados àquele pedaço de chão. E um convite, uma nova inspiração para seus sonhos e devaneios. Inicia-se ali um jogo simples, mas um jogo de luta, de tática, de guerra, de pés descalços pisando o chão para assim revelarem a riqueza rara que possuem. Um jogo do qual aquele garoto, de alguma maneira, agora sabe que não servirá para muita coisa se o Homem não presta.
Uma caneta, um toque para o lado, uma cara-torta matreira, o passe preciso com o calcanhar – de ouro, astúcia de mãos –, a tabelinha, e o chute forte, rente à trave-pedaço-de-pau esquerda. Explosão de alento e alegria infantil – gooooolllllll –, e o braço erguido, punho cerrado, numa humildade que sempre desdenhou dos palpites e humilha os prepotentes. A linha da bola desenhada. Uma obra-prima, imperfeita e inculta. Como deve ser, e como dizem que irritava Flaubert.
Algumas pessoas nasceram para árvore. Outras, para vento. E por mais que se tente, é inútil querer prender o vento em uma gaiola. O Dr. Sócrates, que nunca quis ser árvore, morrera naquela madrugada de domingo, ébrio de todas as convicções que cultivara e que nunca omitira. Um garoto despertou no fim da tarde daquele mesmo domingo, talvez com o pássaro azul do Velho Buk em seu coração, mas moldado para o grande e para o belo, escolhido pela vida a ser o próximo a ir disputar uma dividida – vai, artilheiro, vira o jogo! Quem vai para melhor sorte?

Texto ligeiramente modificado em 03.09.2014.

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Fora, Temer!