quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Eu, revirador de merda*

 *trecho do capítulo do livro Trilogia Suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez (abaixo)

[...]
 
Hoje não estou a fim de negócios. Tenho vinte dólares no bolso. E isso é uma fortuna. Estou pensando em reescrever aquele conto sobre o Rogelio que começava assim: "Não caguem mais no terraço, porra!" Em Cádiz não quiseram publicar porque tinha porra na primeira linha (não entendo, Dom Quixote é um catálogo de palavras assim. Bem, talvez Dom Quixote não seja um bom exemplo para a literatura. Afinal, Cervantes morreu na miséria). Eles me disseram: "É muito forte". Rá. Não sabem o que é forte. Vou reescrever o conto, mas o porra fica lá mesmo. É um porra inarredável.
Ao meu lado se senta um negro muito velho e sujo, com vontade de conversar. Diz que foi patinador da morte e marinheiro. Conheceu todos os continentes. Descia nos portos com seus patins. Até em Nova York apresentou seu espetáculo, três vezes. Levanta a camisa e me mostra umas correntes. Está tudo acorrentado no cinto: a carteira, uma faca enorme, umas sacolas de náilon com papéis e um frasco de alumínio. Aprendeu com um grego a bordo do Caiman Island. Eu o ouço um pouco, mas não. Então me despeço o mais amavelmente que posso e me sento num outro banco. Já está muito escuro e não quero ninguém por perto. Se me roubarem os vinte dólares, fico na lona.
O velho me fez perder o fio do conto do Rogelio. Escrevi há vários anos. Rogelio tinha acabado de morrer e imaginei muitas coisas da vida dele. Não é um bom conto. A realidade é melhor. Nua e crua. Tal como está na rua. Você a pega com as duas mãos e, se tiver força, ergue do chão e a deixa cair na página em branco. Pronto. É fácil. Sem retoques. Às vezes a realidade é tão dura que as pessoas não acreditam. Leem o conto e dizem: "Não, não, Pedro Juan, tem coisas aqui que não funcionam. Você forçou a mão inventando." Mas não. Nada é inventado. Só tive força para pegar toda a maçaroca de realidade e deixá-la cair de supetão em cima da página em branco.

[...]

Então preciso reescrever o conto. Agora vai ser muito mais forte. Sem mentira nenhuma. Só mudo os nomes. Este é meu ofício: revirador de merda. Ninguém gosta disso. Não tapam o nariz quando passa o caminhão de lixo? Não escondem as latas de lixo nos fundos? Não ignoram os varredores nas ruas, os coveiros, os limpadores de fossas? Não ficam enojados quando escutam a palavra carniça? Por isso também não sorriem para mim e olham para o outro lado quando me veem. Sou um revirador de merda. E não é que esteja procurando alguma coisa no meio da merda. Geralmente não encontro nada. Não posso dizer: "Ah, vejam, encontrei um brilhante na merda, ou encontrei uma boa ideia, ou encontrei um negócio bonito." Não é bem assim. Não procuro nada e não encontro nada. Portanto, não posso demonstrar que eu sou um sujeito pragmático e socialmente útil. Só faço como as crianças: cagam e depois brincam com a própria merda, cheiram, comem e se divertem, até que chega a mãe para tirá-las da merda, dar um banhinho, passar perfume e explicar que não podem mais fazer aquilo.
Mais nada. Não me interessa o que é decorativo, nem o que é belo, nem o que é doce, nem o que é delicioso. É por isso que sempre duvidei de uma escultora que foi minha mulher por algum tempo. Suas esculturas tinham paz demais para serem boas. A arte só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira pode nos mostrar a outra face do mundo, aquela que nunca vemos ou nunca queremos ver para não causar incômodos à nossa consciência.
É isso. Nada de paz e tranquilidade. Quem atinge o repouso em equilíbrio está perto demais de Deus para ser artista.
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Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei! vc conseguiu expressar com clareza o que te incomoda nas pessoas. E demonstrar que vc sempre gosta de ser diferente e que o comum é muito pouco diante dos seus anseios...dessa vez, o título foi coerente as suas ideias. "R"...

Fora, Temer!