Memorial da América Latina, obra concebida por Oscar Niemeyer (Imagem do Flickr) |
Eu,
Guaicaipuro Cuatémoc, vim encontrar aos que celebram o Encontro.
Eu, descendente daqueles que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar aos que a encontraram há somente quinhentos anos. Aqui nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e isso é o bastante. Nunca teremos outra coisa.
Eu, descendente daqueles que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar aos que a encontraram há somente quinhentos anos. Aqui nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e isso é o bastante. Nunca teremos outra coisa.
O
irmão aduaneiro europeu me pede documento com visto para poder descobrir aos
que me Descobriram. O irmão usurário europeu me pede pagamento de uma Dívida
contraída por Judas, a quem nunca autorizei vender-me. O irmão ímprobo europeu
me explica que toda Dívida se paga com juros, ainda que seja vendendo seres
humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. E eu os vou
descobrindo.
Também
posso reclamar pagamentos, e também posso cobrar juros. Consta no Arquivo das
Índias, documento sobre documento, recibo sobre recibo e assinatura sobre
assinatura, que somente entre o ano 1503 e 1660 chegaram a Sanlúcar de
Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes
da América. Saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos
faltaram ao seu Sétimo Mandamento. Espoliação? Valha-me Tonantzin de imaginar
que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão! Genocídio?
Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que
qualificam o Encontro como destruição das Índias, ou a extremistas como Arturo
Uslar Petri, que afirma que a arrancada do capitalismo e a atual civilização
europeia se devem a essa inundação de metais preciosos!
Não:
esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser
considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América,
destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a
existência de crimes de guerra, o que daria direito não somente para exigir a
devolução imediata, como também a indenização por danos e prejuízos. Eu,
Guaicaipuro Cuatémoc, prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa
exportação de capitais não foi mais que o início do Plano “MARSHALLTEZUMA”,
para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis
guerras contra os mulçumanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho
cotidiano e outros êxitos superiores da civilização.
Por
isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, podemos perguntar-nos: os
irmãos europeus fizeram um uso racional, responsável, ou pelo menos produtivo
dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indo-americano Internacional?
Deploramos
dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram na Batalha de Lepanto, em
Armadas Invencíveis, em Terceiros Reichs e outras formas de extermínio mútuo,
sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no
Panamá (embora sem o canal). Financeiramente, foram incapazes – depois de uma
moratória de 500 anos – tanto de pagar o capital disponibilizado e seus juros,
quanto de tornaram-se independentes das rendas líquidas, as matérias primas e a
energia barata que lhes exporta e provê o Terceiro Mundo.
Este
quadro deplorável corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma
economia subsidiada jamais pode funcionar, e nos obriga a exigir-lhes – para
seu próprio bem – o pagamento do capital e dos juros que tão generosamente
demoramos todos esses séculos para cobrar. Ao dizer isto, aclaramos que não nos
rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de
20 e até 30 por cento de juros que os irmãos europeus cobram dos povos do
Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos
adiantados acrescidos do módico juros fixo de 10 por cento anual, acumulado
somente durante os últimos 300 anos.
Sobre
esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros composto, informamos aos
Descobridores que somente nos devem, como primeira parcela de sua Dívida, um
total de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas cifras
elevadas à potência de trezentos. Ou seja, um número cuja expressão total seria
necessária mais de 300 dígitos, e que supera amplamente o peso do planeta
Terra. Muito pesadas são essas quantidades de ouro e prata. Quando pesariam,
calculadas em sangue?
Deduzir
que a Europa em meio milênio não fora capaz de gerar riquezas suficientes para
quitar esses módicos juros seria tanto como admitir seu absoluto fracasso
financeiro e/ou a demente irracionalidade dos pressupostos do capitalismo. Tais
questões metafísicas, desde já, não nos inquieta aos indo-americanos. No
entanto, exigimos a imediata assinatura de uma Carta de Intenção que discipline
os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seu compromisso
mediante uma rápida Privatização ou Reconversão da Europa que lhes permita
entregá-la inteira à gente como a primeira parcela da Dívida Histórica.
Os
pessimistas do Velho Mundo dizem que sua civilização está em bancarrota, o que
lhes impede de cumprir seus compromissos – financeiros ou morais. Em tal caso,
nos contentaríamos que pagassem entregando-nos a bala com que mataram o poeta.
No entanto, não poderão: porque essa bala é o
coração da Europa.
¹Este é um texto de ficção, traduzido para o Monkey Club por Amarildo Ferreira Júnior, e escrito originalmente pelo historiador, dramaturgo, escritor e ensaísta venezuelano Luis Britto García, autor de Rajatabla e Abrapalabra, dentre outros livros. Seu objetivo é convidar à reflexão sobre o tema da
conquista da América e do "desenvolvimento" da Europa por meio do uso de
nossas riquezas naturais. Uma versão do texto original em espanhol pode ser acessada pela página da agência popular alternativa de notícias Aporrea.org, sob o título de Guaicaipuro Cuatémoc cobra la deuda a Europa.
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