terça-feira, 15 de abril de 2014

A dívida de Judas¹


Memorial da América Latina, obra concebida por Oscar Niemeyer (Imagem do Flickr)
Eu, Guaicaipuro Cuatémoc, vim encontrar aos que celebram o Encontro.
Eu, descendente daqueles que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar aos que a encontraram há somente quinhentos anos. Aqui nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e isso é o bastante. Nunca teremos outra coisa.
O irmão aduaneiro europeu me pede documento com visto para poder descobrir aos que me Descobriram. O irmão usurário europeu me pede pagamento de uma Dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei vender-me. O irmão ímprobo europeu me explica que toda Dívida se paga com juros, ainda que seja vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. E eu os vou descobrindo.
Também posso reclamar pagamentos, e também posso cobrar juros. Consta no Arquivo das Índias, documento sobre documento, recibo sobre recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre o ano 1503 e 1660 chegaram a Sanlúcar de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América. Saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao seu Sétimo Mandamento. Espoliação? Valha-me Tonantzin de imaginar que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão! Genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que qualificam o Encontro como destruição das Índias, ou a extremistas como Arturo Uslar Petri, que afirma que a arrancada do capitalismo e a atual civilização europeia se devem a essa inundação de metais preciosos!
Não: esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito não somente para exigir a devolução imediata, como também a indenização por danos e prejuízos. Eu, Guaicaipuro Cuatémoc, prefiro pensar na hipótese menos ofensiva. Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais que o início do Plano “MARSHALLTEZUMA”, para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis guerras contra os mulçumanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho cotidiano e outros êxitos superiores da civilização.
Por isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, podemos perguntar-nos: os irmãos europeus fizeram um uso racional, responsável, ou pelo menos produtivo dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indo-americano Internacional?
Deploramos dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram na Batalha de Lepanto, em Armadas Invencíveis, em Terceiros Reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no Panamá (embora sem o canal). Financeiramente, foram incapazes – depois de uma moratória de 500 anos – tanto de pagar o capital disponibilizado e seus juros, quanto de tornaram-se independentes das rendas líquidas, as matérias primas e a energia barata que lhes exporta e provê o Terceiro Mundo.
Este quadro deplorável corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar, e nos obriga a exigir-lhes – para seu próprio bem – o pagamento do capital e dos juros que tão generosamente demoramos todos esses séculos para cobrar. Ao dizer isto, aclaramos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por cento de juros que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados acrescidos do módico juros fixo de 10 por cento anual, acumulado somente durante os últimos 300 anos.
Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros composto, informamos aos Descobridores que somente nos devem, como primeira parcela de sua Dívida, um total de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas cifras elevadas à potência de trezentos. Ou seja, um número cuja expressão total seria necessária mais de 300 dígitos, e que supera amplamente o peso do planeta Terra. Muito pesadas são essas quantidades de ouro e prata. Quando pesariam, calculadas em sangue?
Deduzir que a Europa em meio milênio não fora capaz de gerar riquezas suficientes para quitar esses módicos juros seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demente irracionalidade dos pressupostos do capitalismo. Tais questões metafísicas, desde já, não nos inquieta aos indo-americanos. No entanto, exigimos a imediata assinatura de uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seu compromisso mediante uma rápida Privatização ou Reconversão da Europa que lhes permita entregá-la inteira à gente como a primeira parcela da Dívida Histórica.
Os pessimistas do Velho Mundo dizem que sua civilização está em bancarrota, o que lhes impede de cumprir seus compromissos – financeiros ou morais. Em tal caso, nos contentaríamos que pagassem entregando-nos a bala com que mataram o poeta. 
No entanto, não poderão: porque essa bala é o coração da Europa.



 ¹Este é um texto de ficção, traduzido para o Monkey Club por Amarildo Ferreira Júnior, e escrito originalmente pelo historiador, dramaturgo, escritor e ensaísta venezuelano Luis Britto García, autor de Rajatabla e Abrapalabra, dentre outros livros. Seu objetivo é convidar à reflexão sobre o tema da conquista da América e do "desenvolvimento" da Europa por meio do uso de nossas riquezas naturais. Uma versão do texto original em espanhol pode ser acessada pela página da agência popular alternativa de notícias Aporrea.org, sob o título de Guaicaipuro Cuatémoc cobra la deuda a Europa.

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